domingo, 21 de janeiro de 2018

Até que a morte os separe


        1968 
        04 de Novembro         
        Segunda-feira, 16h00





      Navio UÍGE. Com cinco dias de viagem, neste grande navio, eu e todos os camaradas, esperamos com suprema ansiedade o último dia, para alcançar a tão almejada liberdade. Estamos convencidos que este dia é amanhã e hoje a última noite. Também se houve dizer que desembarcamos na Quarta-feira de manhã. Outros dizem de tarde, porque o barco se atrasou devido à pouca carga que transporta nos porões.
       A viagem, para mim, tem sido ótima e para todos os camaradas que viajam comigo neste camarote que tem o número 333. 
       Há alguns camaradas que têm passado um mau bocado com o enjoo.
                                                                A festejar o regresso

Este grande navio, da nossa Marinha Mercante, levantou âncoras na Quinta-feira, dia 31, às duas horas da madrugada e embarcamos no dia anterior às 20 horas.
Aquilo…! Nunca vi tanta pressa e confusão! Parecia um verdadeiro êxodo! O navio UÍGE estava fundeado ao largo por o cais não tem profundidade suficiente para navios deste calado e, todos nós, conjuntamente com as bagagens, fomos transportados, até ele, nas barcaças da Marinha.
A rapaziada da CCS, do Quartel-General, foi para o cais às 14 horas de Quarta-feira, embora só começasse-mos a embarcar às 20, por ter havido o carregamento de outras cargas para os fundos dos porões e ter atrasado o embarque da maior parte das Companhias operacionais.
Enquanto esperávamos pelo sinal para nos formarmos iam-se trocando comentários, neste ou naquele grupinho, uns de pé, outros sentados na bagagem, a pouca distância uns dos outros.
Um dizia:
        - Eh pá, já tenho saudades dos bifes da Portugália!
Logo outro atacou:
- E eu das canecas!
- E eu das sopeirinhas¹ de Lisboa!
Ironizou ainda outro.
- Ai que saudades eu tenho do cheiro do ar da serra e dos montes da minha terra; do cheiro da carqueja, do carrasco, da urze… e falava da prometida que ficou, entre serras, à sua espera, tecendo entre outros predicados, que era a moça mais graciosa da aldeia.
Acometendo logo um de seguida com a “boca” do costume:
- Eh pá! Estás pr’aí com essa lengalenga e a esta hora já ela caiu nos braços doutro morcão!
Outro deixava transparecer, através do brilho que emanava dos seus olhos, a ansiedade que corria em sua alma para apertar nos braços o filho, já grandote, que não conhecia.
Há sempre nestes grupos um ou dois gajos à espera de uma deixa para “mandar bocas” e logo começou um com a frequente “boca foleira” que, não vou aqui referir, por acatamento ao desafogo do camarada. 
Havia um que dizia, com os olhos rasados em lágrimas, não sentir grande alegria em voltar, pois já não tinha o Pai e a Mãe à sua espera como os tivera à partida na hora da despedida. O Pai terá morrido, ao que diz, de desgosto e a Mãe, pouco tempo depois, ‘caiu’ numa cama não mais se levantando. Espera, com o seu regresso, que ela volte a andar para irem, em promessa, rezar a Fátima.

Despedi-me de todos os camaradas e superiores da secção. O meu chefe, à surdina, ainda me ‘prega’ um sermão que, cá para mim, encaixei por conter algumas verdades, embora, como é óbvio, não gostasse nada deste «puxão de orelhas». 
Nestas idades, quando se tem pouco mais de 20 anos, não gostamos muito de ouvir estes «lembretes». Somos novos, rebeldes e irreverentes; ateamos as nossas fogueiras com o fogo da alma e depois queimamo-nos. Temos, ainda, uma vida a vencer pela frente e muitas vezes, senão quase sempre, pagamos por isso, mas ao menos que saibamos reconhecer e daí fazer a necessária aprendizagem para que, no futuro e no momento próprio, possamos corrigir as nossas ações.  
O furriel Oliveira, o cabo Nora, o cabo Orestes e outros camaradas, foram despedir-se de mim ao cais. Também aqui, o cais estava repleto de camaradas a despedirem-se dos que partiam a caminho da “peluda” e, com certeza, a rezarem para que o seu regresso esteja para breve.
Bem! Tudo ficou para trás! Não levo saudades comigo e, com certeza, também não terei deixado nenhumas! Muita coisa, senão tudo, será para esquecer. Não há boas recordações e creio que poucos as levarão. 
Se alguma vez quiser recordar, deitarei mão deste diário e de outros apontamentos em folhas soltas, se a memória me falhar. E, porque Stendhal é senhor da seguinte citação: «um livro é um espelho que se passeia ao longo de um caminho. Tão depressa reflete aos nossos olhos o azul do céu, como o lodo dos lamaçais das bermas», só Deus sabe se, num longínquo dia, com base nestas narrativas, valerá a pena escrever umas memórias. 
Neste período de tempo, se bem, (mal), ajuízo pelas narrativas apocalípticas contadas à mesa dos cafés e esplanadas, pelos heróis do ‘mato’; pelos heróis do blá, blá, blá das Repartições do ar condicionado…, muitos levarão consigo traumas e pesadelos que os consumirão para o resto das suas vidas.
Quando vagueava pelas ruas de Lisboa, ficava impressionado quando via alguns indivíduos a atirarem-se para o chão, e rastejarem à procura de um abrigo num qualquer obstáculo, ao estrondo de qualquer ratter produzido por um escape de automóvel mais ruidoso.
Um meu vizinho regressou de Angola sem uma orelha que lhe foi arrancada à dentada por um “turra”, numa luta de corpo-a-corpo. Mas, ele exibia como troféu, e a modos de compensação, duas orelhas negras, cortadas a sabre, dentro de um frasco, mergulhadas em formol.
Ouvia contar casos de indivíduos que dormiam com granadas debaixo da cama com medo que os “turras” lhes batessem à porta a acertar contas.
Contou-me um, em jeito de anedota, que tinha uma amante russa e que esta dormia de um lado da cama, a mulher do outro lado e ele no meio.
Numa visita a sua casa ele apresentou-me a sua amante russa que estava bem escondida e protegida nuns gavetões desconchavados de um armário velho e que era, nem mais nem menos, uma Kalashnikov² que mantinha como troféu de um espólio sacado aos “turras” nas matas do norte de Angola.  
Outros, ainda, têm pesadelos que estão a arder nas chamas do inferno e esse inferno não é mais que as palhotas das tabancas que, eles atearam fogo, para queimarem vivos os “turras” aí acoitados.
E por aí adiante, um sem fim de histórias macabras que, sendo umas verdadeiras, outras meias verdadeiras e, evidentemente, outras sem verdade nenhuma, darão para entender o drama psicótico que estas criaturas, e aquelas que, vivendo a seu lado, sob o mesmo teto, terão de suportar durante longo tempo das suas vidas senão até ao fim delas.   
As Mães que antes não casavam as filhas, por impedimento da guerra, vão agora casá-las com os traumas latentes dissimulados com juras de amor eterno feitas no altar sob diáfanos véus, «até que a morte os separe», carregando, também elas, a pesada cruz que ambos levarão ao calvário, até que a morte os consuma.
Para a rapaziada da rendição individual, assim como para os Comandos e restante tropa empinada, fora-lhes reservado os camarotes mas, como fomos os últimos a chegar, estes já estavam ocupados pela tropa macaca que chegou primeiro. Foi uma confusão. Não quiseram sair do bem-bom e tivemos que ir instalar-nos em tarimbas improvisadas num dos porões. O que nos valeu, para mal dos seus pecados, é que alguém influente tomou providências junto das chefias e eles tiveram de ‘saltar’ dos camarotes da terceira classe e ir ocupar as tarimbas de madeira bichosa para onde nos tinham empurrado.
O Oceano tem estado um pouco agitado. As ondas encapeladas fustigam a proa do navio que, não obstante ser muito grande, baloiça muito. A carga dos porões, sendo humana, não é suficientemente pesada para estabilizar o navio.
O comer tem sido muito bom e com fartura, acompanhado de vinho à descrição e fruta. Eu tenho comido com bastante apetite, para ver se chego com outro aspeto, que não este macilento do cacimbo, junto dos meus.
Tem havido cinema todas as noites no convés da ré e ontem gostei muito do filme que foi muito a propósito; «O Adeus às Armas», de David O. Selznick, baseado no romance de Ernest Hemingway, que conta a história de um grande amor em ambiente de guerra, com Rock Hudson, Jenifer Jones, Vittorio De Sica e Alberto Sordi. Anteontem deu outro filme de amor com Cary Grant e Deborah Kerr, «O Grande Amor da Minha Vida». Tem sido assim todas as noites, com a exibição de filmes a enternecer o coração da rapaziada.
Fala-se que hoje o jantar vai ser melhorado, talvez por ser 0 últim0 a ser-nos servido a bordo. 
      Tenho gasto algum dinheiro que não contava gastar. Como por aqui tem aparecido alguns tripulantes a vender artigos de contrabando em conta, senti-me compelido a comprar, entre outros, um relógio da marca “Seiko” de corda automática e um isqueiro “Ronson”. Não é que tenha necessidade destes objetos; alguns não passam de simples bugigangas que, para além de servirem para gastar o pouco dinheiro que tenho, também servem para ajudar a gastar o tempo que ainda falta para chegar que, faltando pouco, parece uma eternidade.  


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¹ [Eram as criadas de servir que, vindas da província, muito novinhas, à procura de melhor sorte, pululavam nas grandes cidades. Era trivial ver-se o magala de farda cinzenta e a criada de avental, gola e touca brancos no derriço pelos recônditos dos bairros da cidade. Salvo a devida distância entre os extremos, e ainda que mal comparado pareça, o “magalinha” estava para a “sopeirinha” como hoje o jogador de futebol está para a modelo.] 

² [Espingarda automática de origem russa denominada de AK47, mais conhecida pelo sobrenome do seu inventor Mikhail Kalashnicov, muito utilizada pela guerrilha nos teatros de guerra de Angola, Moçambique e Guiné.]