quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Como este duro silêncio custa a suportar

                 
        1968
        16 de  Junho
Domingo, 20h00

 

   Café Pireza. Presentemente tenho andado um pouco adoentado, creio que com o princípio de paludismo. Na Quinta-feira, saí da secção já com um pouco de febre. Depois, para mais ajuda, ainda estive de serviço de Ronda à Cidade, que é, dizendo a verdade, uma grande estopada. Saí deste serviço era uma hora da manhã e mal me tinha de pé. Estive durante todo o dia de Sexta-feira na cama, somente me levantando para ir ao médico. Sábado ao meio-dia já me encontrava melhor, embora um pouco fraco porque na Sexta-feira não comi coisa alguma. Hoje já estou melhor, mas ainda fraco. Continuo com pouco apetite.
 
        Na Sexta-feira, recebi uma carta do meu irmão João, trazendo dentro uma nota de 20 escudos, para beber umas cervejas à felicidade do seu casamento.
        Recebi, também, carta da Mãe da minha namorada, a falar-me da filha e do nosso casamento. Diz-me que, a decisão mais acertada, é de facto esperar pelo meu regresso à vida civil e ter um emprego garantido. Cuidados de uma Mãe.
 
        O Centro de Ensino Técnico e Orientação Profissional, (CETOP), escreve-me a comunicar que, a partir de agora, somente vai enviar-me um caderno de exercícios por mês.
        Isto, assim, vai transtornar-me nos meus planos. Vou escrever-lhes a contar-lhes um pouco da minha vida a ver se me compreendem e continuam a enviar-me os quatro cadernos mensais.
 
        Agora tenho mais um chefe novo, também capitão, com o curso de majores. Este é que é, segundo ouço, o substituto do capitão Campos. Traz em mente grandes inovações, (como se tivesse descoberto a pólvora), e os planos já estão a ser elaborados. O capitão Carvalho ainda continua, mas em segundo plano.
 
 Poucas horas depois:

       Como este duro silêncio custa a suportar. Há pouco tempo encontrava-me com vários amigos e agora encontro-me só. Absolutamente só, com os meus fantasmas habituais, oprimido, neste ar bafiento, entre estas paredes cheias de prateleiras atafulhadas de pastas e papéis.
        Uma forte nostalgia invadiu o meu coração e quase começo a chorar. Estou só e ninguém me vê. Este é um de alguns momentos da minha vida muito triste. É um sentimento movido pela ausência e saudade.
        Os meus parceiros da marmita e companheiros de trabalho foram-se embora. É nestes momentos que sentimos o valor do companheirismo. As tricas, as zangas, as lutas, já não têm qualquer sentido. Contam, agora, os momentos bons que tivemos juntos. Quem me dera, agora, o barulho de outrora!   
        Entretanto, saí para espairecer desta melancolia, tornando a voltar pouco tempo depois. A rua também estava só, quase deserta, sem ninguém. Naquele perímetro passavam não mais de dois ou três transeuntes que se reconhecia, pela linguagem, serem militares vestidos à civil. A cidade fica vazia, após o regresso dos militares aos seus quartéis. O mesmo acontece com as cidades e vilas da Metrópole, se calhar até em todas as cidades do mundo, onde há quartéis. As fardas são que dão movimento às nossas vilas e cidades. Até parece que o país está fardado. Quando as fardas regressam aos quartéis as cidades ficam vazias, ficam na quietude, no marasmo, sem movimento e voltam os fantasmas da noite, não os fantasmas da secção, mas os outros; os dos medos, os das incertezas, os dos receios, os das crenças, os da imaginação. Eles andam por aí, por todo lado, como almas penadas sedentos de perversidades. Eles perscrutam, por entre o ar, por entre as frinchas, o cogitar dentro dos lares com as portas e janelas bem trancadas não vão eles ou outros espíritos malignos entrar com a má notícia e perturbar a paz aparente.       
        Caminhei um bocado, como se andasse perdido, em direção ao cais e encontrei, por mero acaso, um camarada amigo que, no decorrer do nosso diálogo, me pareceu, também ele, andar consumido com os seus pensamentos.
        A serenidade das águas a ondear à volta dos cascos dos barcos velhos atracados ao, não menos velho, ancoradouro em madeira; o sereno ondular da prata líquida do estuári0, sob um luar magnificente e lá longe o horizonte de recorte mal definido entre a imensidão do firmamento e as águas do Atlântico que me trouxerem até aqui e que, daqui, haverão de ser as mesmas a levarem-me de volta, se Deus quiser.
        A noite já vai longa e, a ausência de vivalma, o sussurro das ondas, a calmaria do ambiente, convidam à reflexão e meditação.
        Para lá, muito longe, do horizonte, que acabei de descrever, a minha casa também está muito só, vazia e, provavelmente, a esta hora, com portas e janelas bem trancadas. Dentro daquelas paredes, que antes eram movimento, vida e alegria à mistura com algumas amofinações, deve haver, agora, uma grande melancolia inconsolável com aquelas duas almas gastas pelo tempo, sozinhas durante o dia, e outra que regressa do trabalho ao fim do dia, que são: a minha Mãe; a minha Avó; o meu Pai.
        O meu irmão mais novo casou-se, o do meio está na tropa e eu estou aqui, agora, a terminar este capítulo solidário com o mesmo sentimento de solidão e tristeza.

Porventura, já estarei cacimbado?

 
        1968
25 de Maio
Sábado, 21h00

 
 
    Secção. Estive muito tempo a olhar para ti minha querida. Amo-te muito.
        Mas, para quem estou eu a falar! Porventura, já estarei cacimbado? Oh! Dá-me vontade de rir! Não! Apetece-me antes chorar.
        Estava a falar com a minha namorada. Aliás, com a sua fotografia. É bonita. Gosto muito dela. O cacimbo, ao fim de algum tempo, provoca estes delírios. Daqui, a distância à loucura, é menor que um passo. Porém, vou continuar. É a minha companhia de todos os dias e fala-me duas vezes por semana, através das palavras escritas nas suas cartas. Escreve mal e expressa-se pior, mas eu também o não faço melhor. Quando se ama, tudo o resto é acessório. É como diz o velho ditado: «Quem feio ama bonito lhe parece».
        Já me disse, em uma das suas cartas, que lhe foi entregue o serviço de chá com figurinhas chinesas e que, não cabe em si de contente, por ter gostado muito.
 
        Tenho a impressão que me vou sentir um pouco só. O amigo Torres, lá se vai embora, na próxima Segunda-feira. O Direito, meu conterrâneo, também já foi e, a mim, ainda me faltam cerca de seis meses. 
        Vou ficar aqui sozinho dentro destas quatro paredes que não basta saturarem-me o espírito e a alma durante o dia, quanto mais à noite, ainda. Mas sou obrigado. Obrigado, isto é; sou eu que me obrigo a mim próprio. Só aqui, no barulho do silêncio, com os fantasmas da noite; o ruído do caruncho a roer a madeira, as traças a traçarem o papel, a rastolhada dos ratos à procura de cama para os ninhos, poderei fazer os meus trabalhos.
        Também já não terei o rádio transístor para ouvir música, durante as horas que aqui fico. A música tem sido de todos, de quantos a queiram ouvir, mas o rádio que a transmite é do Torres e ele não quer desfazer-se dele. Vai levá-lo consigo, como companheiro das horas que não passam. Das horas tristes e solitárias.
        Vou ter de arranjar paciência para conseguir vencer estes 160 dias que ainda me faltam e que, quanto mais se aproximam do fim, mais difíceis se tornam.
        Só em pensar que hoje fiz, precisamente, 19 meses que saí de Lisboa já me anima.

Por diversas vezes recomecei o mesmo trabalho

    
       1968
       13 de Maio
       Segunda-feira, 23h00

 
        Secção. Está quase na hora de eu ir apanhar o transporte para o quartel e aproveito uns escassos minutos, que ainda tenho, para registar um episódio que à pouco ocorreu.
        Desenhava e, por diversas vezes recomecei o mesmo trabalho, apenas porque não conseguia concentrar-me com a harmonia do ambiente constantemente alterada.
        O Rodrigues, o Guimarães e o Araújo, faziam um barulho infernal. Eu e o Torres trabalhávamos nas nossas coisas. Ele nas suas miniaturas e eu nos meus desenhos. Aborreci-me e disparatei, prometendo que de futuro não entrariam mais na secção depois da hora do expediente.
        Eu bem sei que não posso nem devo fazer isso, mas é só para os intimidar. Eles também têm o direito de aqui estar só que, a chave da secção está confiada a mim e ao Torres, por comermos cá dentro.
 

Começa a época das chuvas - Esta minha atitude leviana


       1968
       08 de Maio
       Quarta-feira, 14h00

 

    Secção. Estou um pouco cansado. Quando durmo mal ou insuficiente ando todo o dia assim; de mau humor e de uma languidez entorpecida.
        Deitei-me à meia-noite e não sei que horas seriam quando adormeci, mas já deveria ser muito tarde. Estive muito tempo a ler até que o inconsciente me vencesse.  
        De manhã tive que me levantar mais cedo para ir ao hospital. Ando em consulta externa a tratar dos dentes.

        O Direito, meu conterrâneo, embarca hoje para a Metrópole com a sua missão cumprida. Apesar de algumas vezes andarmos de candeia às avessas, continuamos bons amigos e como ele conhece a minha namorada confiei-lhe o meu serviço de chá para lho entregar em mão.¹

        Esta manhã, já choveu um pouco e o dia está mais fresco. Já não falta muito para que a chuva comece a cair torrencialmente e nos apanhe desprevenidos na rua. Aqui é assim. Está um dia de sol muito bonito e, às duas-por-três, começa a esgaçar que nem chega a dar tempo para nos abrigar.
        Começa a época das chuvas que é de Maio a Outubro.

 ________________
¹ [Esta minha atitude leviana que, depois de ter caído em mim, considerei de imponderada e irracional talvez motivada por uma patética emoção afetiva do momento que não ficou registada neste diário nem no meu espírito e que, por isso, hoje a esta distância de tempo não me lembro, custou-me a perda do meu primeiro prémio de desenho que ganhei no inicio da minha comissão no Ultramar. A chama da paixão, como todas as paixões, levou-a o vento; o amor esvaeceu e o namoro desfez-se; houve a troca da devolução da correspondência e outros objetos menores mas, o serviço de chá com figurinhas chinesas, não voltou à posse do seu laureado.
        Não obstante todo este tempo passado, liga-me a este objeto um forte sentimento de estima e recordação que, apesar de tudo, não sei, também agora, movido por que juízo penso não estar definitivamente perdido. Penso que um dia, se dia houver! seja por alma de quem for, ele (o serviço de chá) voltará à posse do seu legítimo dono, nem que seja em um qualquer esconso dos subterrâneos do além aquando da expiação dos nossos pecados,  os meus e os dela, bebendo a infusão das trevas pelo serviço de chá das doze figurinhas chinesas.]    

A correr com as macas para a pista dos hélios

 
        1968
        16 de Abril
Terça-Feira, 21h00
 

 
    Secção. No Domingo, ao passear pela cidade, encontrei dois camaradas amigos que vieram do ‘mato’ para visitarem camaradas seus conhecidos que estão feridos no hospital. Não é que não tivesse que fazer mas, para espairecer, aproveitei a boleia e fui com eles.
        Estes camaradas, que fomos visitar, estavam em uma enfermaria destinada a doentes com ferimentos ligeiros. Tinham várias mazelas no corpo, provocadas por estilhaços de granadas, que são sanadas com pequenas cirurgias.
        Á saída da enfermaria para o corredor esbarramos com um camarada enfermeiro nosso conhecido e com ele fomos visitar outras enfermarias que, mais valia não tivesse-mos ido, de tão perturbados que ficamos. Mas a curiosidade foi mais forte.
        Pelos corredores fomos vendo e sentindo a dor traumatizante de camaradas mutilados no corpo e na alma: uns, sem uma perna, arrastando-se em muletas; outros, sem as duas pernas rolando em cadeiras de rodas; outros, sem pés, sem um braço ou uma mão. Muitos deles, à espera de próteses encomendadas em clínicas na Alemanha. Uma calamidade humana!
        Nas enfermarias, o que vimos e sentimos foi ainda pior: camaradas com o corpo todo enfaixado de ligaduras da cabeça aos pés, que mais pareciam múmias; pernas e braços engessados, levantados e esticados ao alto; uns, ligados só com o coto da perna ou do braço; outros, com parte do corpo, senão o corpo todo, em carne viva que mais pareciam estar virados do avesso; outros… Visões horripilantes entrecortadas por gemidos dilacerantes. 
        Na última enfermaria vimos um indivíduo de cor numa lástima indescritível e, admirados, perguntamos se era algum terrorista.
        Não, é tropa das nossas fileiras. Esses estão em enfermarias isoladas. Respondeu o enfermeiro.
        Antes de sairmos, no cruzamento de dois corredores, o enfermeiro explica-nos: 
        Neste corredor, ao fundo, estão a ver aqueles PM? É a ala do hospital, com várias enfermarias com “turras” com ferimentos da mesma gravidade que viram nas enfermarias dos nossos camaradas.
        Prosseguindo, disse:
        Estes “turras" são abandonados pelos deles, aquando dos combates, e recolhidos pelas nossas tropas que, ao mesmo tempo, vão sendo tratados e interrogados pelo serviço de informações da PIDE.
        Para completar este cenário de horrores, quando estávamos cá fora, a caminho do regresso, vimos maqueiros e enfermeiros numa correria, curvados, com as macas para a pista dos hélios ao mesmo tempo que iam chegando, um a um, três helicópteros dos Comandos com evacuados.
        Todos eles traziam feridos. Talvez mortos. Não soubemos. Nem a gravidade dos feridos, nem se haveria mortos. Este acesso, mais que compreensível, estava vedado. Somente, de longe, poderíamos imaginar. 
        Lembro-me de quando cá cheguei, depois de poucos dias passados, ter narrado nos primeiros capítulos deste diário um depósito de viaturas militares todas empilhadas, torcidas e retorcidas dos embates das minas e das morteiradas, de ter comentado:
        Se esta amálgama está neste estado, em que estado estarão os que nela se transportavam!

Cogitando nas razões que atrás referi

 
        1968
12 de Abril
Sexta-feira, 13 horas


 
     Acabei à pouco de ler toda a correspondência que recebi e, infelizmente, nem todas as notícias são agradáveis.
        Recebi uma carta dos meus velhotes com 100 escudos no interior e dizem-me que brevemente receberia uma encomenda.
        A Rosa também me escreveu a devolver-me um aerograma no qual eu fazia uma pequena chantagem que não resultou. Este aerograma foi escrito como se fosse dirigido à minha Mãe, a pedir-lhe dinheiro, mas endereçado à Rosa. Fiz isto com segunda intenção, mas não pegou. Bem visto este ato não seria muito digno e a providência se encarregou de o gorar, antes que tentasse a estratégia com outras.
        A minha namorada fala-me no casamento e diz que prefere esperar pelo meu regresso. Eu, entretanto, cogitando nas razões que atrás referi, também entendo que esta será a decisão mais acertada.
        Recebi uma carta da Lupe e nela vem a triste notícia da morte do seu Pai causada por um acidente rodoviário. Já lhe escrevi a enviar-lhe os meus pêsames. 
 
        O meu novo chefe de serviço começou a gostar do meu trabalho. Pediu-me para eu lhe fazer a planta da secção a qual já fiz e ele gostou muito. Já conhece, também, as minhas tendências artísticas e elogiou-me bastante. Eu não estava presente mas os camaradas que ouviram, inclusive os sargentos, contaram-me.
 
        O amigo e conterrâneo Valdemar está na cidade em consulta externa e todos os dias tem vindo visitar-me.
 
        Vieram para a secção três novos primeiros-cabos, ‘piriquitos’, substituir o primeiro-cabo Direito, o Torres e o Rodrigues, que brevemente vão passar à “peluda”, regressando à Metrópole.

 

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Normalmente estas invasões são de noite


        1968
04 de Abril
Quinta-feira, 22 horas



    Café Tamar. Saí agora mesmo da secção enervado comigo mesmo. Aborreci-me com um desenho de um suporte de chumaceira. Já por três vezes que o repito e não há meio de ficar bem.
        Não me arrelio pelas vezes que tenho de repetir os desenhos, que até serve para praticar, mas sim pelo papel vegetal inutilizado que agora, não me é tão fácil obtê-lo, por o meu camarada e amigo Paiva ter terminado a sua comissão de serviço e regressado à Metrópole.
        Já recebi os exercícios que estavam em atraso e as notas são muito satisfatórias, ficando com a impressão que o professor me favorece.
 
        O chefe da secção, capitão Campos, vai no próximo Domingo para a Metrópole, por terminar a sua comissão de serviço. Fica, provisoriamente, a substitui-lo outro capitão que ainda não sei o nome. Tem ares de bom tipo.
 
        Ontem fui ao cinema e de regresso ao quartel, uma das viatura que transporta o pessoal de e para a cidade, o condutor ao desviar-se de outra viatura encostou demais à berma que se não fosse uma árvore interpor-se, das muitas que há de um e outro lado da estrada, teríamos tombado e rolado por uma ribanceira com paragem num ribeiro a transbordar de sapos.
        Felizmente não houve danos. Apeamo-nos todos e todos empurramos até pormos o unimog na estrada.
        Por ter falado em sapos, vou aqui relatar um fenómeno curioso e, ao mesmo tempo, repelente. Esta estrada, conhecida pelo nome de estrada de Santa Luzia, do percurso de militares e viaturas, sai do Quartel-General em linha recta e é ladeada de ambos os lados por árvores frondosas, sendo muitas delas mangueiras, que dão um fruto muito apetecido que é a manga e, ainda, de um dos lados, por um riacho em quase toda a sua extensão, vai desembocar na cidade, pegando, igualmente em linha recta, com a Avenida Américo Tomás, que lhe dá seguimento, até ao Forte da Amura. Na época das chuvas, que está quase a começar e se prolonga até Novembro, durante a noite, estes anfíbios, atraídos pelo calor do alcatrão, sobem à estrada e, sem apelo nem agravo, são esborrachados e espalmados pelos pneus das viaturas.
        Quando fazemos este percurso a pé, de regresso ao quartel, somos bombardeados com membros fragmentados destes batráquios que explodem debaixo dos rodados das viaturas e se projectam contra o nosso corpo.
        Quando entramos no quartel ainda vamos a sacudir o resto de patas, vísceras e outros pedaços do canastro destes animais. No dia seguinte, até chega a ser impressionante; a estrada está juncada de tanto bicho esmagado. Na noite seguinte e em todas as noites, enquanto durar a época das chuvas, este degradante e deplorável espetáculo, repete-se.
        É frequente, no final da época das chuvas com o início da época seca, devido ao calor e à humidade dos trópicos, a cidade ser invadida por pragas de insectos voadores e rastejantes de grandes proporções, provenientes das bolanhas do interior, (charcos enormes de águas estagnadas onde fecundam os malfadados mosquitos que, provocam a febre da malária, através da sua mordedura).
        Normalmente, estas invasões de insectos são feitas de noite, atraídos pela luz dos candeeiros. Há camaradas que têm tochas preparadas, para lhes fazerem um acolhimento «caloroso» e, de braço esticado no ar, junto às casernas, os estorricam com a chama dos fachos.  
        Ouve-se o som característico do crepitar das asas a arder e dos corpos torrados a rebentarem, deixando no ar um cheiro infecto e nauseabundo. No dia seguinte, é impressionante ver o chão completamento lastrado dos cadáveres destes bichos que chegam a ter o tamanho de um dedo.
        Outras vezes, senão simultaneamente, as invasões são terrestres. Um sem número de bichos a rastejar pelo chão dos quais se destacam os grilos e as formigas com asas. Estas, também enormes, levantam voo e sobrevoam as nossas cabeças, como se fossem a aviação inimiga.
        No meio desta bicharada está o temível mosquito causador do paludismo e outras doenças dos trópicos que, segundo ouço, se manifestam, em muitos casos, mais tarde com o avançar da idade.

terça-feira, 28 de novembro de 2017

Nas costas dos outros vemos as nossas


        1968
29 de Março
Sexta-feira, 21h00

 
 

    Hoje “lerpei” com o correio. Também, o que teve mais importância para mim tinha-o recebido na Quarta-feira.         
        Agora, o que estou a estranhar é a falta de correspondência do CETOP. Já há quase dois meses que lhes enviei os exercícios de desenho para correção e ainda os não recebi de volta.   
        A Lupe também não me escreve. Ou se fartou de mim, ou aconteceu o pior, que é aquilo que eu penso que tenha acontecido e já descrevi em capítulo anterior.
        A minha namorada é que, ultimamente, tem sido infalível. Escreve-me todas as semanas e eu respondo-lhe, igualmente todas as semanas, com todo o meu amor.
        Sinto que agora começo a gostar mais dela. As palavras escritas nas suas cartas têm agora outro sentido, fazendo-me sentir que me ama. Chegamos já a falar sobre o nosso casamento. Não fosse a situação em que me encontro e as sérias dificuldades presentes, talvez a ideia se concretizasse. Poderíamos casar, até, por procuração. Seria para mim muita felicidade, quando chegasse a Portugal tê-la nos braços como minha esposa.
        Isto é uma pura veleidade. Não passa de uma grande tolice. Quando sair daqui, nem sequer tenho uma situação definida no que toca a emprego. O lugar que tinha no emprego e deixei para vir para a tropa nem sequer estará à minha espera e meios próprios de subsistência não tenho. Os meus pais não permitiriam e, então, os dela também não.
        Fiz compreender a minha situação à minha namorada e que esta passaria depois a ser a situação de ambos uma vez que, também ela, não tem meios próprios de subsistência.
        Se Deus quiser em Novembro próximo, terminarei a minha comissão de serviço no Ultramar. Espero, também, estar a acabar o meu curso de desenho e, espero ainda, com os conhecimentos e prática adquiridos arranjar emprego nesta área.
        Para grande surpresa minha, na última carta que recebi dos meus pais, dizem-me que o meu irmão mais novo, ainda sem cumprir o serviço militar, vai casar-se. Então eu, aproveitando esta «deixa», na resposta a esta carta, fiz suavemente uma abordagem sobre o que achavam se me casasse por meio de uma procuração.
 
        Tudo tem corrido normalmente bem, desde a última vez que escrevi neste diário, apenas, ultimamente, ando a dormir muito mal. Há noites em que nem sequer durmo quatro horas. Não sei o que será isto. Durante o dia tudo se passa normalmente e à noite, quando me deito, por volta das onze horas, meia-noite, começo a pensar em várias e variadíssimas coisas que já passaram e outras que, sei lá, podem vir a passar-se. Isto durante horas a fio, até o espírito se fatigar, adormecendo com estes pensamentos e acordando com pesadelos.
       
        Estou agora a cair em mim e a refletir no que escrevi nos parágrafos anteriores. Então se eu estou bem, pelo menos julgo estar, e tenho estes pesadelos, o que seria se fosse atrás daquelas ideias tolas. Não dormiria mais, com certeza. «Aguenta pianinho pá, não vá o casamento por procuração dar-te a volta ao miolo e passar a ser uma preocupação». 
        É costume dizer-se que «nas costas dos outros vemos as nossas». Andam camaradas em tratamento psiquiátrico: um; porque a mulher lhe escreveu a dar-lhe a notícia de que já é Pai e passa o tempo, nos corredores do hospital, a contar pelos dedos e o diabo das contas não batem certo, outro; porque recebeu carta de um amigo a dizer-lhe que, por várias vezes, viu a mulher dele a entrar numa pensão rasca de Lisboa, sempre com o mesmo gajo e pensa que, se calhar, esse gajo é o amigo que lhe escreve, outro; é a mulher que, escreve a dizer-lhe, mudou de emprego e o novo patrão gosta muito dela, está sempre a aumentá-la, faz muitas horas extraordinárias, e logo começa a cabecinha a trabalhar, outro, ainda; quando andava perdido no ‘mato’, comeu uma raiz qualquer e perdeu o tesão e agora não sabe se quer regressar.
        São assim, algumas das histórias que se contam por aqui. Elas não se esgotam neste parágrafo, mas são o suficiente para se perceber alguns dos, entre muitos, danos causados por esta guerra.

A correr Portugal de lés-a-lés com as botas da tropa nos pés

 
        1968
01 de Março.
Sexta-feira, 21h00.
 
 
     Ontem foi o dia dos azares. Para mim, é claro. Quando as coisas correm mal, é só a nós.
        Depois de ter recebido o pré, e por isso cheguei mais tarde à secção, o meu chefe como queria pegar comigo e não 0 podendo fazer por chegar atrasado barafust0u, encrespado contra mim, por ter encontrado um montão de boletins de recrutamento, ainda por preencher à máquina, para serem enviados às unidades de procedência.
        Respondi-lhe, educadamente e em sentido, que uma parte da culpa seria minha mas que, e o meu capitão sabe bem, os boletins têm de ser primeiro selecionados e este serviço depende do sargento Laurentino que teve o acidente. Apeteceu-me perguntar-lhe por que ainda não arranjou alguém para o substituir mas achei mais acertado ficar calado. Isto é tropa e com a tropa não se brinca!  
 
        Hoje, para além de outras, recebi uma carta de um meu ex-colega de trabalho e amigo João Videira.
        Recebi uma carta, também, dos meus pais com 100 escudos intercalados em papel químico.
        O meu Pai, segundo entendo na sua carta, não está muito contente comigo, por pensar que estou a gastar muito dinheiro. Como posso eu evitar de gastar, com tanta despesa!
 
        Hoje tenho andado um pouco mal-humorado e o motivo deste humor reside no problema financeiro. Ontem mesmo recebi o pré e a massa não me chega para satisfazer os meus compromissos.
        Há camaradas que me devem algum dinheiro. Se ao menos eles me pagassem, sempre de momento ficaria mais desafogado.
        Eu tenho o hábito, quando peço emprestado, de saldar as dívidas logo que tenho dinheiro. Mas há alguns camaradas que é preciso andar constantemente a lembrar-lhes. Há um deles, que me deve 100 escudos há mais de um ano e até já deixei de lhos pedir por me sentir envergonhado sabendo eu, pela vida que faz, bem que mos poderia pagar.
        Alguns camaradas, sabendo do meu desespero, aconselham-me a desistir do curso, por ser ele que me leva a fatia maior. Outros vão mais longe; dizem que é dinheiro mal gasto, por este tipo de ensino não ser oficial e o diploma não garantir qualquer aptidão.
        Embora, em fases criticas como esta, muitas vezes, o desânimo se apodere de mim, eu uso todas as minhas forças para vencer o desalento que me invade o espírito e faço por conseguir ultrapassar a crise.
        Penso que, em todo o caso, poderia reduzir os exercícios a dois cadernos por mês. Sempre pouparia metade mas, também, não acabaria o curso na altura da desmobilização e não estaria tão apto, depois, para arranjar emprego.
 
        Á tarde fui comprar bilhete para ir ao cinema e de regresso fui ‘apanhado’ pela PM por trazer a barba e o cabelo grandes.
        De facto assim era. Eles tinham razão. Aceitei, sem comentar. Passaram-me uma guia de apresentação, para me apresentar o mais rápido possível ao oficial dia.
        Vim para a secção e de seguida fui ao barbeiro do quartel. As instalações da PM ficam ao lado e fui ter com um camarada que conseguiu desenrascar-me. Uf…! Mais uma vez me livrei das garras destas feras e, provavelmente, de uma carecada ou de umas patrulhas “à Benfica”.
        Em lembrar-me que, por causa de um estrugido tão simples e estúpido como este, ao fim de cumpridos 28 meses de tropa, faltando-me apenas 0it0 para a “peluda”, vim aqui cair neste desterro… 
        Faltam-me, agora, também, oito meses para acabar de cumprir esta condenação a 24 meses de apodrecimento da alma neste degredo.
        Todos fazemos coisas estúpidas e desatinamos de vez em quando. A tropa tem destas coisas: «por dá cá aquela palha»; ao mínimo «pisar do risco», cai-nos o fogo e o inferno em cima. É a disciplina! É o RDM! (Regulamento da Disciplina Militar).
        Não foi nada! Foi, tão-somente, «aquela porrada da ordem» que, ainda agora, mal me sinto acordado do turpor profundo que se abateu sobre mim e me condenou a este tormento neste destino de entorpecimento. Não é nada! Apenas, são mais 16 meses de tropa, a somar aos 36 meses já obrigatórios. Não é muito tempo, quando se tem a nossa idade, mas, sempre são 16 meses a menos, nas nossas vidas. Tempo este, que o tempo dirá das feridas do corp0 e da alma das sequelas traumáticas aqui contraídas.
 
        Para muitos, principalmente, oficiais e sargentos do quadro dos três ramos das Forças Armadas, esta guerra é um negócio, de muita forma, rentável. Muitos deles, são autênticos papa comissões. Colecionam comissões de serviço como quem coleciona ‘milenas de D. Maria’¹. Há os que chegam a comprar e trocar comissões de serviço a preço de bom dinheiro, fazendo cá os seus negócios paralelos e investindo os seus ganhos em terrenos e propriedade horizontal na Metrópole.
        Ouvi falar em casos de negócios mal resolvidos; indivíduos que pagam a outros para irem «à guerra» no seu lugar, acabando estoutros, não raras vezes, passado algum tempo, por serem mobilizados e os primeiros, por ironia dos azares, em alguns casos com o tempo do serviço militar quase cumprido, acabarem por ir, no lugar destes, «dar o corpo ao manifesto».
        Também, para a simples praça, apesar de tudo, não é mau de todo, se atendermos a vários aspectos positivos. O mancebo, na generalidade, oriundo das berças, abrutado e embrenhado para lá dos confins, por detrás do Sol-posto, que apenas comia uma refeição completa nos dias de festa, quando comia e quando as havia, nem sabia servir-se da faca e do garfo, somente abandona a santa terrinha para ir às «sortes» e incorporar nas fileiras do Exército para cumprir voluntariamente, (entre aspas), o serviço militar, tem a oportunidade única de conhecer terras e outras gentes do seu país que, de outra forma, provavelmente, não teria, não fosse ele obrigado, já disse; voluntariamente, a abandonar o seu meio rural, onde sobrevivia alabregado do pastoreio e do amanho das terras.
        Com uma guia de marcha, o mancebo começa por viajar de comboio, em terceira classe, coisa que muitos não experimentaram antes, e, ao ir às «sortes», (inspeção militar), passa a conhecer a primeira vila ou cidade.  
        Passado um ano, novamente com guia de marcha, e de trouxa aviada, torna a viajar de comboio, comodamente sentado em bancos de ripas de madeira, e conhece a segunda, ao assentar praça para fazer a recruta.
        Novamente com guia de marcha, passados cerca de dois meses, após a recruta concluída, torna a viajar de comboio, no conforto da terceira classe, até à terceira terra onde está instalada a unidade da especialidade que vai tirar.
        Ao fim de, novamente, cerca de dois meses retoma a viagem de comboio até à quarta vila ou cidade onde está instalada a unidade de acolhimento passando, aí, «a pronto».
        Neste vai pra lá e pra cá, é um «corra Portugal de lés-a-lés com as botas da tropa nos pés» (…)²
        Até que chega o dia daquilo que pensa ser uma certeza desde a primeira hora ao conhecer uma quinta cidade, para onde vai, igualmente com guia de marcha, depois da passagem «a pronto», incorporar uma companhia ou um batalhão de mobilizados, aguardando por outra guia de marcha, para um destino incerto. Chegou o temível momento do embarque para África. Nome apenas conhecido dos livros da Instrução Primária; aqueles que a fizeram, no devido tempo, porque muitos vêm fazê-la à tropa.
        Também a viagem de barco, para não falar a de avião, e a imensidão das águas do mar, é um acontecimento novo. Para mim, por exemplo, as poucas vezes que andei de barco, foi na travessia do rio Tejo para Cacilhas.
        Entretanto os ímpetos do mancebo foram vergados; dobrada a sua vontade, os seus modos ficam amansados e o seu carácter é fortalecido.
        A par da autodisciplina, é-lhe incutido o espírito de missão; capacidade de esforço, resistência e sofrimento; de fraternidade e camaradagem. Vontade de cumprir as tarefas mais árduas e arriscadas, mesmo com o risco da própria vida, juntamente com maneiras e o respeito pelas hierarquias. Total observância da «bíblia» dos militares que   nunca leu nem nunca lhe foi lida é o RDM.
        Chegado o fim do serviço militar cumprido, com a “peluda” à vista, muitos arranjam trabalhos ou empregos com profissões de acordo com as suas especialidades, como: maqueiros; enfermeiros; condutores-auto; mecânicos-auto; radiotelegrafistas; escriturários; cozinheiros; padeiros; etc., etc., entre muitas outras. E se destes o seu comportamento tiver sido exemplar: a caderneta militar limpa de vermelhos e, para mais achega, uns louvores averbados; umas medalhas de honra e mérito; etc., etc., então, ouro sobre azul; emprego certo. Muitos já não voltarão ao meio de onde vieram e ficam-se pelas cidades e vilas.
        Outros, não tendo adquirido as mesmas aptidões, para não voltarem à sua parvalheira e terem garantidas as três refeições diárias, «metem o Chico», (metem o requerimento), para ficarem na tropa. Estes são, na gíria, conhecidos por «lateiros».  

                                                               * * * 
* É vulgar dizer-se daqueles que se aproximavam da idade de ir à tropa e que eram revessos ou “corrécios”:
          − Deixem lá que eles são tortos, mas vão para onde os endireitam!
       − Saem de lá mais direitinhos que um fuso!³                                                                  
                                                                   
                                                                      * * *
¹ [Chamavam-se de ‘milenas’ ou ‘donas Maria’ as notas de 1.000 escudos; 1.000$00 ou de 1 conto de réis,  à data, com a efígie de D. Maria II.
Durante o período da guerra do Ultramar, circularam as notas de 1.000$00 com as efígies de D. Filipa de Lencastre, D. Dinis, D. Maria II e D. Pedro V. À época, estas eram as notas mais altas do nosso sistema monetário, que hoje equivaliam a cinco Euros. Quem fosse detentor de 1.000 destas notas, (mil contos de réis), era milionário.
Na tropa, quem tivesse «umas ‘milenas’», era rei e senhor.

² [Expressão muito utilizada por nós nesta época mas que não era original.]

³ [Alguns! Que outros, insurretos de todo, ficam mais tortos ainda. Com o acumular de graves infracções ao RDM têm como destino, entre outros, o presídio militar do Forte da Graça, em Elvas.
Condenados a trabalhos forçados, carregam nos costados, encosta abaixo, encosta acima, sacos com calhaus ou barris com água, ora meios cheios, ora meios vazios, de «mola vergada», até serem vergados os seus ímpetos rebeldes. Mesmo assim, ainda os há daqueles que, ‘enxertados em corno de cabra’, «antes quebrar que torcer». No fim, são expulsos como indesejáveis à tropa e devolvidos à sociedade. É esta que tem de os suportar, pois foi esta que os pariu.]

⁴ [Os castigos graves eram averbados a tinta vermelha.]
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Há-os, igualmente, torcidos de «marca corneta» que a família não tendo mão neles, e querendo ver-se livre deles, correm aos quartéis a pedir que os incorporassem nas fileiras mais cedo, na esperança da tropa os amansar. Com a falta de rapazes prá guerra a tropa corre a suas casas, incorpora-os à força com o rótulo de insurreto, e, com uma guia de marcha de «carne pra canhão», vão diretamente cumprir o serviço militar ao Ultramar, num quartel qualquer no meio do ‘mato’, bem perto da guerra.
    Há nesta tropa filho de muita mãe.