quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Normalmente estas invasões são de noite


        1968
04 de Abril
Quinta-feira, 22 horas



    Café Tamar. Saí agora mesmo da secção enervado comigo mesmo. Aborreci-me com um desenho de um suporte de chumaceira. Já por três vezes que o repito e não há meio de ficar bem.
        Não me arrelio pelas vezes que tenho de repetir os desenhos, que até serve para praticar, mas sim pelo papel vegetal inutilizado que agora, não me é tão fácil obtê-lo, por o meu camarada e amigo Paiva ter terminado a sua comissão de serviço e regressado à Metrópole.
        Já recebi os exercícios que estavam em atraso e as notas são muito satisfatórias, ficando com a impressão que o professor me favorece.
 
        O chefe da secção, capitão Campos, vai no próximo Domingo para a Metrópole, por terminar a sua comissão de serviço. Fica, provisoriamente, a substitui-lo outro capitão que ainda não sei o nome. Tem ares de bom tipo.
 
        Ontem fui ao cinema e de regresso ao quartel, uma das viatura que transporta o pessoal de e para a cidade, o condutor ao desviar-se de outra viatura encostou demais à berma que se não fosse uma árvore interpor-se, das muitas que há de um e outro lado da estrada, teríamos tombado e rolado por uma ribanceira com paragem num ribeiro a transbordar de sapos.
        Felizmente não houve danos. Apeamo-nos todos e todos empurramos até pormos o unimog na estrada.
        Por ter falado em sapos, vou aqui relatar um fenómeno curioso e, ao mesmo tempo, repelente. Esta estrada, conhecida pelo nome de estrada de Santa Luzia, do percurso de militares e viaturas, sai do Quartel-General em linha recta e é ladeada de ambos os lados por árvores frondosas, sendo muitas delas mangueiras, que dão um fruto muito apetecido que é a manga e, ainda, de um dos lados, por um riacho em quase toda a sua extensão, vai desembocar na cidade, pegando, igualmente em linha recta, com a Avenida Américo Tomás, que lhe dá seguimento, até ao Forte da Amura. Na época das chuvas, que está quase a começar e se prolonga até Novembro, durante a noite, estes anfíbios, atraídos pelo calor do alcatrão, sobem à estrada e, sem apelo nem agravo, são esborrachados e espalmados pelos pneus das viaturas.
        Quando fazemos este percurso a pé, de regresso ao quartel, somos bombardeados com membros fragmentados destes batráquios que explodem debaixo dos rodados das viaturas e se projectam contra o nosso corpo.
        Quando entramos no quartel ainda vamos a sacudir o resto de patas, vísceras e outros pedaços do canastro destes animais. No dia seguinte, até chega a ser impressionante; a estrada está juncada de tanto bicho esmagado. Na noite seguinte e em todas as noites, enquanto durar a época das chuvas, este degradante e deplorável espetáculo, repete-se.
        É frequente, no final da época das chuvas com o início da época seca, devido ao calor e à humidade dos trópicos, a cidade ser invadida por pragas de insectos voadores e rastejantes de grandes proporções, provenientes das bolanhas do interior, (charcos enormes de águas estagnadas onde fecundam os malfadados mosquitos que, provocam a febre da malária, através da sua mordedura).
        Normalmente, estas invasões de insectos são feitas de noite, atraídos pela luz dos candeeiros. Há camaradas que têm tochas preparadas, para lhes fazerem um acolhimento «caloroso» e, de braço esticado no ar, junto às casernas, os estorricam com a chama dos fachos.  
        Ouve-se o som característico do crepitar das asas a arder e dos corpos torrados a rebentarem, deixando no ar um cheiro infecto e nauseabundo. No dia seguinte, é impressionante ver o chão completamento lastrado dos cadáveres destes bichos que chegam a ter o tamanho de um dedo.
        Outras vezes, senão simultaneamente, as invasões são terrestres. Um sem número de bichos a rastejar pelo chão dos quais se destacam os grilos e as formigas com asas. Estas, também enormes, levantam voo e sobrevoam as nossas cabeças, como se fossem a aviação inimiga.
        No meio desta bicharada está o temível mosquito causador do paludismo e outras doenças dos trópicos que, segundo ouço, se manifestam, em muitos casos, mais tarde com o avançar da idade.

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