1968
25 de Agosto
Domingo, 13h00
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Hoje faço 25 anos.
Mais um aniversário que aqui passo nesta vida bastarda, insípida, sem cor,
cinzenta e estúpida que tarda em chegar ao fim. Sem um tostão na algibeira, um
meu camarada de serviço ofereceu-me uma garrafa de vinho verde para acompanhar
o almoço.
Ontem recebi a encomenda que estava à espera. Veio por
barco, despachada pelos serviços da Cruz Vermelha Portuguesa, (CVP), e por isso é que
demorou a chegar. Como que para compensar a espera, para além do material,
trazia um bom naco de presunto e, na secção, por volta das 22 horas, eu e o Manuel Dias, fizemos uma ceia acompanhada
de vinho verde.
Neste momento estou no café
Tamar com o meu camarada e amigo ‘Manel’ que me convidou para ir com ele
até ao quartel de engenharia, onde está ‘hospedado’,
petiscarmos um pouco de presunto e salpicão da terra dele acompanhado com vinho
verde. Não aceitei, devido ao meu estado de alma. Preferi voltar à secção, para
ficar sós no sussurro do silêncio com os fantasmas da noite, e continuar com o
trabalho que tenho entre mãos.
Ontem de tarde iniciei um retrato a pastel de um camarada o
qual vou dar-lhe hoje os últimos retoques. Assim, sendo esta a minha vida a
vida da minha alma, pode ser que, no meio dos traços e rabiscos, esqueça o dia
de hoje um pouco triste e pense que para o ano já cá não estarei, graças a
Deus.
Para o ano, neste dia de aniversário, não sei como vou
estar. Provavelmente estarei às voltas com o emprego. Espero bem já estar a
trabalhar. Dê por onde der, tenho de me ‘esfarrapar’,
tenho de fazer esse esforço. Não posso esmorecer. Tenho de manter a esperança,
como diz o velho ditado; «quem procura
sempre alcança». Uma coisa será certa; se Deus quiser já
estarei no meu meio ambiente e só isso já chega para me animar.
Já se fala no embarque. Provavelmente, lá para o fim de
Outubro ou princípio de Novembro. Só em pensar que faltam apenas dois meses e
pouco mais, já muito me consola e alegra o espírito.
Quando nos cruzamos o tema das conversas é de que já falta
pouco e qual será o barco que nos vai levar de regresso. Alguns avançam que
iremos de avião, por sermos poucos.
Em princípio, regressaremos todos os que vieram neste grupo
de rendição individual.
Lembro-me, passados poucos dias daqui ter chegado, de me
terem dito que a minha Companhia de destino tinha regressado do ‘mato’ e se encontrava na cidade em
vésperas de embarcar para a metrópole, por ter terminado a comissão de serviço.
Parece que o tempo não passou. Parece que foi ontem. Parece que foi há muito
tempo. Já lá vão perto de dois anos. É muito tempo. Mesmo muito tempo, para uma
vida que dura tão pouco.
Já que, no segundo parágrafo deste capítulo, mencionei o
nome da Cruz Vermelha, devo aqui mencionar também que, e a exemplo do MNF, as mulheres desta instituição
desempenham um trabalho importante no apoio moral e material às tropas
combatentes, principalmente aos mutilados da guerra.
Pelo que contam alguns camaradas tem a secção de Bissau, como
sua dirigente, uma bondade de senhora que é a esposa do senhor general António
de Spínola, governador e comandante-chefe desta Província). Senhora que muitos
soldados acarinham de Mãe.
Alguns camaradas em aflição, deslocam-se à secção da Cruz
Vermelha e abeiram-se dela para lhes valer, implorando-lhe que interceda junto
das chefias, e em alguns casos do general, para obterem uma licença de regresso
à Metrópole, nos TAM, a fim de se juntarem à família que se reveza junto ao
leito do Pai ou da Mãe a esvair-se da vida às portas da morte.
Esta senhora trata os soldados como se fossem seus filhos;
afaga-lhes, com a sua mão, o rosto e os cabelos com ternura, transmitindo-lhes
palavras de conforto e coragem. Estes, lembram-se dos afetos da sua Mãe, deixam
pender a cabeça no seu ombro, aquecem, por instantes, o coração e a alma e
choram comovidos pelo carinho e saudades, beijando-lhe as mãos.