terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Tão jarreta como a outra flor



        
       1968                                                                    
       11 de Agosto
        Domingo, 20h00


   Secção. Estou sozinho. Os meus camaradas de serviço e o Jorge Guimarães saíram à pouco indo às suas vidas. Eu aqui fiquei e assim que acabar de escrever esta narrativa, fardo-me e vou para o quartel.

Ontem à tarde e hoje vesti-me à civil para tirar umas fotografias. Neste momento estou bastante enervado porque comecei a desenhar e não consegui fazer algo que jeito tivesse.

O Guimarães trouxe-me correio mas nem isso me conseguiu acalmar, para mais que as notícias também não são muito boas. A minha Mãe há quase um mês que me despachou uma encomenda com material de desenho e ainda a não recebi. Fiquei zangado e cometi a estupidez de escrever um aerograma à minha Mãe, como se ele tivesse culpa, coitada.
Ela, para me acalmar, pobre Mãe, enviou-me 20 escudos, amortalhados em papel químico, dentro de um aerograma, sem o Pai saber. Porque, se soubesse, seria o fim do mundo lá em casa.
Diz o meu irmão, José Maria, no aerograma que me escreveu, que o nosso «velho» está cada vez mais cruel. Fartou-se de massacrar as infelizes, quando soube que eu pedi o material de desenho.       
O meu irmão está de licença, foi a casa e sabendo do que se estava a passar, apressou-se a comprar outro material e enviou-o por um avião dos TAP.
As notícias da minha namorada, também não são muito animadoras. Alguma gentinha, lá do sítio, anda a encher-lhe a cabeça para nos separar e pelo conteúdo das suas cartas ela está confusa e indecisa.

O capitão C. Álvares foi-se embora da secção e para o lugar dele veio um major tão jarreta como a outra flor…. 

Ontem à noite fui ver um programa de ilusionismo protagonizado pelo ‘conde d’Aguillar’¹ que anda em digressão pelo Ultramar.
Creio que nunca irei esquecer-me de, a dada altura do espectáculo, após um número de magia ter falhado, creio que de propósito, o conde ter contado uma história em jeito de metáfora após a vaia e a pateada da plateia.
 Num lapso de tempo, houve-se a voz do conde no balcão e toda a plateia se vira para trás. Uns a vaiar:
 - Uh! … Uh! … Uh! …
Outros a bradarem de espanto:  
 - Oh! … Oh! … Oh! …
Então, ele começa a contar a história de quando era rapazinho distrair a família com as suas pantominas:
 - Um dia fui passar férias para a quinta do meu Avô, ali para os lados de Alenquer, e soltei os burros que estavam fechados dentro de uma cerca. O Avô, zangado, pergunta-me aonde é que estão os burros ao que eu respondo, com a minha traquinice de então, que os fizera desaparecer. Então o Avô, com uma das suas frases sábias, diz-me:
 - Olha meu neto, fica sabendo, esses burros multiplicar-se-ão ao longo da tua vida e, hão-de perseguir-te sempre, para qualquer lado que vás!
Ao mesmo tempo o conde esticava o braço na direcção da plateia e com o indicador afilado, apontava:
- Ei-los aqui!

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¹ [Nome de cartaz do artista, ilusionista consagrado de seu nome Saul Fernandes de Aguillar.]              
                    

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