segunda-feira, 30 de outubro de 2017

duas peixeiras do mercado do Bolhão

 
         1967
 23 de Junho
         Sexta-feira, 19h30


    Estou deitado sobre a cama. Não posso sair. O comandante da Companhia “agraciou-me” com oit0 dias de dispensas cortadas, por ter faltado à formatura do pequeno-almoço na passada Quarta-feira. Isto aconteceu porque na noite anterior tinha-me deitado bastante tarde e cansado por andar a trabalhar no citroen do furriel Santos.
        Nesse dia tive uma zanga com o meu camarada e amigo Silvestre, «vizinho do andar debaixo, da casa do lado», por causa de uma conversa pouco amistosa.
        Há já algum tempo que nós, «por tudo e por nada», nos incompatibilizávamos. Precisamente no dia que fiquei “à pega”, por ter faltado à formatura, tinha de acontecer.     
        Eu estava muito agastado, por ter ficado “à pega”. E agora, mais esta, fiquei pior que estragado.
        Tudo começou por este meu camarada se meter à conversa, com indiretas “foleiras”, quando eu falava com o camarada, «meu vizinho, do andar debaixo».
        Ao regressar dos lavabos, depois de cortar a barba, vejo umas cuecas imundas, por terem andado a arrastar pelo chão, em cima da minha cama. 
        «O meu vizinho do andar debaixo» disse-me que foi ele que as pôs ali, (não sei se, para me provocar, também) julgando que seriam minhas, uma vez que eu ponho a roupa que lavo a enxugar numa corda esticada, entre os ferros da cama, por dentro da rede mosquiteira. É este, em geral, o modelo de estendal de cada um.  
Até aqui, depois de eu ter dito que esta peça de roupa não era minha e que já a tinha visto a arrastar pelo chão, tudo ia bem, não fosse este «meu vizinho, da casa do lado», intrometer-se com “bocas foleiras” que me deixaram num estado de irritação capaz de rebentar. 
Discutimos que até parecíamos duas peixeiras do mercado do Bolhão e deixamo-nos de falar por algum tempo.
Hoje, às 15 horas, tive que encontrar-me na Primeira Repartição com o meu chefe de serviço. Aqui trabalha o meu camarada e amigo Silvestre que se meteu à conversa e começamos a falar. A zanga durou pouco tempo.
Às 18 horas começou a chover torrencialmente e se não fosse o chefe ter posto o seu jipe ao nosso dispor, ter-nos-íamos molhado todos, a apanhar boleia para irmos jantar.
        Esta semana esperava bastante correio e somente recebi um aerograma do meu irmão a dar-me a notícia que está a tirar a especialidade de polícia militar no Regimento de Lanceiros, nº. 2. 
         Desde que vim para a tropa que não gramo, nem sequer um bocadinho, a maralha desta especialidade. Parecem uns pavões a passearem-se com ares de muita importância. Então quando me lembro que vim aqui parar a esta terra de satanás por eles passarem no lugar errado à hora errada. Na verdade, tenho de ser realista, a culpa foi somente minha, eu é que estava à hora errada no lugar errado. Tenho-lhes um asco de morte, mas agora que lá está o meu irmão…!

     

«o menino Carlinhos», como é mimado


         1967
15 de Junho
Quinta-feira, 21h30 


Estou deitado sobre a minha cama de primeiro andar. Parece-me que começa esta noite o tempo das chuvas. O céu é frequentemente iluminado por fortes relâmpagos acompanhados de violentos trovões e chove torrencialmente como há muito não via chover.
Era para ir à cidade com um mecânico arranjar, ao serão, numa oficina, o citroen de dois cavalos do furriel Santos e de um seu amigo que trabalha no Grande Hotel e que ambos me incumbiram desta tarefa. Mas, porque começou a chover, «água a cântaros», a trovejar e a relampejar que mete medo, desistimos de sair.
Porém, o mecânico também já não tinha grande vontade. Ao-fim e ao-cabo, pensei que até foi bom. Assim, deito-me mais cedo, porque a noite passada trabalhei bastante.

Nesta noite, fui servir numa festa dos senhores. E, senhoras, evidentemente. Não tenho muito jeito para estas coisas mas o dinheiro falou mais alto e obrigou-me a isto.
Na Associação Comercial houve um bufete, organizado pelo Grande Hotel, ofertado pelos TAP, (Transportes Aéreos Portugueses), aos seus clientes. O meu amigo Carlos e colega de serviço, «o menino Carlinhos» como é mimado na secção, à noite e aos fins-de-semana trabalha de jaleca branca agaloada neste hotel a servir às mesas, convidou-me para eu ir servir bebidas ganhando 100 escudos mais a ceia.
Este trabalho durou das 20 horas à meia-noite. Nada mal. É pena não haver mais festas destas. Digo isto, somente, a pensar nos 100 escudos¹.
Foi, também, outro camarada da secção. Tanto ele como eu, não estávamos habituados e quando chegamos ao fim estávamos estoirados. Já pouco nos apetecia cear. Bebemos uns uísques e regressamos de táxi ao quartel, encantados da vida, já bem a trocar o passo.


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¹ [Hoje, seriam 50 cêntimos.]

sábado, 28 de outubro de 2017

Armaram-se eles próprios em cavaleiros


        1967
        06 de Junho
Terça-feira, 19h30
 
 

 
     Estou na secção aonde o meu camarada e amigo Silvestre  trabalha. Um pequeno cubículo com prateleiras cheias de pastas e papéis até ao teto e meia dúzia de velhas secretárias sob o ar, empoeirado e macilento, tangido por uma grande ventoinha dependurada do mesmo teto.                                                         
        Enquanto eu escrevo neste diário, o meu amigo lê «qualquer coisa» de confidencial, no meio de toda esta barafunda de papéis.
        O meu amigo interrompeu-me para ver «esta coisa» confidencial; um relatório sobre as atividades terroristas nesta Província.    
        Pelo pouco que li neste relatório com o carimbo de reservado e, resumindo, sem entrar em detalhes, é que estamos perante um grande movimento de subversão com grandes apoios do exterior, não só dos países de África, como de países da Europa e de Leste e que, o inimigo está a ganhar cada vez mais vantagem sobre nós, tanto no terreno ocupado, com nas incursões bélicas, como no campo diplomático a nível político. E ainda que, a tendência desta situação, à medida que o tempo passa, é para nós cada vez mais desfavorável e que, se não tomarmos medidas menos convencionais, correremos o risco de perder esta guerra. Mais grave ainda é que, no próprio seio das nossas Forças Armadas, a nível de chefias subalternas, começa a sentir-se alguma movimentação de descontentamento e intranquilidade, havendo, também, patentes da hierarquia superior que não acreditam n0 fim desta guerra sem passar por uma resolução política. Entendo que, para não entrar em outros pormenores, será melhor ficar por aqui.

        No Sábado passado, ao fim da tarde, fui mais dois camaradas ao restaurante Piquenique comer frango assado, especialidade da casa, preparado com um molho especial à base de óleo de palma¹.
       Ainda estávamos a meio, e mal tínhamos começado a saborear o petisco, quando soaram tiros de rajadas de metralhadoras e o zumbido das balas a cortar o ar e a tracejarem sobre as nossas orelhas.
        Pensámos de imediato que era algum ataque terrorista e cada um, aliás todos que estavam na esplanada, tratou de se abrigar, uns dentro do restaurante, outros, os mais afastados e perto da contenda, agachados detrás do cascabulho das ostras, que, àquela hora da tarde já os havia, em montanhas coniformes, erigidos casca a casca aqui e ali, junto às mesas, mais altos do que qualquer dos devoradores deste molusco que o deglutam, empurrado garganta abaixo, à força do peso da cerveja. 
        As coisas acalmaram. Ouviu-se muito barulho de vozearia e berros, vindo a verificar-se que afinal tudo não passou de uma escaramuça das grandes entre duas tropas especiais que resolveram brincar às guerras; os Fuzileiros e os Paraquedistas.
        Constou-se, de seguida, que a refrega terá começado no Estádio Sarmento Rodrigues, não muito longe do restaurante aonde nos encontrávamos, após um desafio de futebol. Os «paras», (Paraquedistas), por rixas passadas, correram à pancada os «fuzos», (Fuzileiros Navais), até ao quartel. Estes, uma vez dentro da sua própria casa, armaram-se eles próprios em cavaleiros da desordem, pegaram em armas e, «em pé de guerra», rechaçaram os «paras» que, dando corda às botas, esticaram as gambetas, deram à sola e puseram-se a milhas.
        Este incidente parece ter sido logo abafado pela PIDE e pelo Comando Territorial, pois nunca mais se soube nada. Nem o jornal, nem a rádio anunciaram o que é que fosse. Nem ninguém mais falou nisto, quer nas notícias de jornal da caserna, quer nas conversas à mesa dos cafés. Fica-se com a impressão de isto parecer não estar assim tão mau, porque para sentirmos a guerra é preciso faze-la entre nós².
        Desde que cá cheguei, é a segunda vez que ouço tiros na rua.
        Logo no início de cá estar, quando caminhava numa rua paralela à avenida central, ouvi tiros e vozes a gritar: 
       Arredem-se! Arredem-se!
        E vejo um oficial miliciano, deitado no chão, a apontar uma G3 e disparar sobre um cão grande que espumava e fugia desnorteado. O cão caiu morto e a tropa que vinha no jipe, de onde saiu o oficial, recolheram-no e levaram-no. Soube depois que o bicho era portador da raiva. 
Amanhã é dia de correio e estou mesmo a ver que vou “lerpar”. Ultimamente tenho recebido pouco correio. Acabei de escrever um aerograma muito lamecha à minha vizinha, Mariana, com a rotineira “canção do bandido”. Ela não aceitou o pedido que lhe fiz para ser minha madrinha de guerra. Diz-me que já tem namorado e não pode arriscar o seu casamento que está para breve. Se aceitasse, diz-me na sua carta, correria o risco de perder o noivo e de vir a apaixonar-se pelo afilhado, pois que, normalmente, é a fatalidade das madrinhas de guerra e que nem sempre dá em casamento.


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¹ [Azeite extraído da palmeira.]
² [Soube-se mais tarde que terão morrido dois Paraquedistas.

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Tenho “lerpado” com a correspondência


 
        1967
        25 de Maio
        Quinta-feira, 20h00 
 

     É dia de Corpo de Deus. Estou no café Avenida e enquanto continuo a escrever este diário, (que não é tão diário), o meu camarada e amigo Silvestre foi comprar bilhetes para irmos ao cinema ver «55 dias em Pequim», de Nicholas Ray; com Charlton Heston, Ava Gardner, David Niven….  
        Está uma grande ventania, que leva tudo à frente, e bastante fresco. Tudo indica que vai chover.
        O meu chefe de serviço tem andado, ultimamente, muito mal-humorado. Por qualquer insignificância, «pega por tudo e por nada», com qualquer um de nós. Tanto faz ser soldado como sargento. Está a revelar-se uma pessoa sem personalidade alguma. A boa impressão que eu tinha dele desapareceu e, também, já não estou muito bem na sua boa graça. Talvez eu, também, faça um pouco por isso não fazendo, algumas vezes, as coisas como ele quer.       
        Ontem, eram sete horas e 30 minutos, estava eu e o meu camarada e colega de serviço, Araújo, sentados numa pequena esplanada do café Pireza, que fica defronte da porta de entrada da secção, quando ele passou transportado por uma viatura. Abriu a secção e foi trabalhar. Então, quando chegaram as 0it0 horas, entramos na secção e os seus bons dias, depois de nós o saudarmos, foram: «Porque é que vós, em vez de estardes ali repimpados no café, não estais na secção a trabalhar? Se saís mais cedo à hora da saída, deveis compensar esse tempo!»
        O recado devia de ser para mim, por saber que eu tenho uma chave da secção. Calámo-nos e começamos a trabalhar mas, falando para os meus botões, se saímos mais cedo é para arranjarmos boleia e chegarmos ao quartel a horas das formaturas do almoço e do jantar.
        Entendo que na tropa à que amochar e não resmungar mas, como chefe da secção, bem que poderia requisitar uma viatura para nos transportar no ir e vir destas andanças, como fazem as outras secções exteriores ao quartel.
        É uma maçada para nós, debaixo de um calor abrasante e desgastante, ter que apanhar boleia, quatro ou seis vezes por dia, para nos deslocarmos da cidade para o quartel e deste para a cidade e sempre com a preocupação de cumprir os horários. 
 

Pequena esplanada do café Pireza – «Sala de espera da Secção»

        O meu amigo e camarada Silvestre já regressou e não arranjou bilhetes. Este cinema é a única sala de espetáculos da cidade e qualquer filme, mesmo com muita rodagem, ou que não preste, é sempre uma estreia. A tropa que vagueia pela cidade, sem nada que fazer, não havendo outro tipo de diversão, vai ver o mesmo filme duas e três vezes: uns, para passar o tempo; outros, porque é novidade, para eles.
        UDIB, União Desportiva Internacional de Bissau, é o nome desta casa de espetáculos e pertence a um clube de futebol desta cidade com o mesmo nome.
 
Tenho “lerpado” com a correspondência. Esta manhã, somente recebi uma carta da minha namorada.
        O meu amigo Mário ainda não me respondeu a dizer-me alguma coisa sobre o concurso de desenho.
 O meu camarada fez-me gastar tinta e pôs-me um pouco triste. Afinal sempre arranjou bilhetes para o cinema. 
 

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

E calhando levo um tiro nos cornos que me f...


 
        1967
        20 de Maio
        Sábado, 21h30

 
    Hoje, da parte da manhã, foi «dia grande» na cidade. Foi festejado o terceiro aniversário de permanência do governador militar, nesta Província. O chefe da minha secção, dispensou a maior parte do pessoal, para assistir à parada, em frente ao palácio, e desfile das tropas pela avenida central.

Esta Sexta-feira, não recebi correspondência, como esperava, principalmente do meu amigo com o recorte do jornal com o anúncio do concurso de desenho do Diário Popular. Também esperava correspondência da minha vizinha, respondendo ao pedido que lhe fiz para ser minha madrinha de guerra.
Na Quarta-feira, recebi um aerograma da minha namorada, a fazer as pazes com o nosso amor. Não sei porquê, sinto que é ela mais o meu amor que eu o amor dela. Talvez ciúmes… não sei!    

Ultimamente, tenho andado um pouco doente. Sinto esta dor incomodativa do lado esquerdo do tórax que me perturba bastante. Já na Metrópole a sentia, mas nunca lhe dei grande importância. Aqui, com este clima e esta pressão, tem-se acentuado mais. Já por três vezes fui ao médico:  a primeira vez e a segunda receitou-me injecções; a terceira, quando lhe disse que fumava uma média de quarenta a cinquenta cigarros por dia, disse-me para fumar menos ou mesmo deixar de fumar. Disse-me, ainda mais, para não beber café, deduzindo que esta dor no peito terá origem no meu constante estado de ansiedade e que este era agravado pelo excesso de tabaco, álcool e café.
Reconheço que estes excessos à mistura com este clima doentio são, ainda, duplamente agravados e poderão ser a causa desta dor. 
Estou a lembrar-me, há uns dias atrás, da resposta que um camarada, alentejano, deu ao médico quando este lhe disse para não fumar tanto que, assim, prejudicava a saúde ao mesmo tempo que ia colecionando pregos para o caixão, ao que ele respondeu:
 «Ó, senhor Doutor! Já agora! Não fumo, não bebo, não f…!»
 «Porque estou eu pr’aqui marfado se daqui a três dias vou ‘bater’ com os ‘tomates’ no ‘mato’ e calhando levo um tiro nos cornos que me f...!»    
 
Ultimamente também me tem acontecido um facto que, não sendo estranho, me preocupa. Há noites que, ao sonhar com raparigas e algumas nem sequer conheço, me masturbo. Ainda esta tarde, quando dormia a sesta, acordei com esta sensação que me deixou indisposto.

São 22 horas, no momento que estou a terminar este capítulo. Estou no café Avenida com um meu camarada e amigo e não fomos ao cinema por não termos dinheiro.

 

O ter sempre que fazer faz-me bem


 
         1967
 06 de Maio
 Sábado, 22h00



 
 

   Estou no café Avenida. Estou de serviço à Ronda Ambulante e como precisava de escrever uma carta amorosa a uma amiga, que é minha vizinha, pedi a um camarada e amigo para me confirmar a ronda e como estou no último turno creio não haver problema.

Ultimamente, tenho-me ausentado um pouco deste diário. Já o disse antes não somente por ter pouco que escrever mas, também, por ter o tempo ocupado, ora com a leitura, ora com os desenhos.
Agora, ando a fazer um estudo para um desenho alusivo ao «cancioneiro popular» para um concurso no Diário Popular, por intermédio de um amigo de Lisboa que fez a minha inscrição neste jornal.
Não sei exatamente como representá-lo. Haverá muitas formas. Resta-me imaginar uma forma mais original e não sei se esta que estou a trabalhar o será.

Tudo tem corrido normalmente bem. O ter sempre que fazer faz-me bem. Traz-me preocupado com o que faço e não penso tanto no isolamento.
Na secção, quando não tenho trabalho à máquina de escrever, arranjo sempre qualquer coisa que me absorva o tempo e os meus pensamentos de angústia e ansiedade.
        Ultimamente tenho-me dedicado à encadernação dos cadernos dos registos de recrutamento da secção e, embora nunca tivesse feito este trabalho, tenho-me ajeitado bem. O capitão, meu chefe de serviço, gosta muito deste meu trabalho, mas já notei que sabe agradecer pouco. Quando lhe pedi para se responsabilizar pelo meu desarranchar do rancho geral hesitou não querendo responsabilidades. Por fim, lá o convenci e assinou a proposta.
Ainda não entreguei a proposta na minha Companhia CCS, (Companhia de Comando e Serviços do Quartel General). Sem a intervenção de um superior, que poderia ser o meu chefe, demora muito tempo a ir a despacho.
        Já vi que o meu chefe se está marimbando e eu já não tenho tanto gosto de fazer o que não me compete. Por vezes, chego a detestá-lo, por ser tão mesquinho em tudo. Qualquer dia destes, vou pedir-lhe para autorizar a minha licença, para a ir gozar à Metrópole utilizando as viagens nos barcos fretados pelo exército.
 
 
 

Estudo para o concurso do "cancioneiro popular"
«a dança das cantarinhas»


        Está a chegar o tempo das chuvas e as temperaturas tornam-se mais frescas. Já a noite passada choveu.
       Tenho recebido, sempre que há avião, correspondência e, uma das vezes, até bati o recorde com sete aerogramas um dos quais do meu irmão do meio a dizer-me que já está na tropa; assentou praça no quartel do Campo de Tiro da Serra da Carregueira em Belas. 

 

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Um camarada ‘metido em maus lençóis’


 

 
        1967
30 de Março
Quinta-feira, 21h30

 
 
Depois de um longo período de ausência, lembrei-me hoje que à muito não escrevia neste diário. Se continuar com ausências como esta, deixará de ser um diário para ser um mensário. Também, neste período de tempo, não fosse um caso de alguma forma insólito para o qual contribuí para ajudar a resolver o imbróglio que a seguir vou descrever, pouco ou nada de importante haveria para narrar.
Este é um daqueles acontecimentos que, invariavelmente, tem de vir parar à volta das mesas dos cafés e que, pela sua parte hilariante, é digno de registo.
Andavam, à volta das mesas, uns tantos camaradas a angariar dinheiro através da venda de umas rifas que sorteavam um rádio da marca Hitachi, daqueles comprados nas lojas dos libaneses que abundam por aí, dizendo que era para ajudar um camarada «metido em maus lençóis». 
Este camarada, terá “tirado o cabaço”, (tirado os «três vinténs»), a uma bajuda, (rapariga muito jovem), e, para não ser obrigado a ficar com ela para o resto da vida, poder embarcar com a sua Companhia que está prestes a regressar à Metrópole, terá de pagar em género, ao pai e ao Homem Grande, a usurpação da castidade da bajuda que de nenhuma forma pode devolver.
Este pagamento, em género, tem a ver com a importância social do pai da bajuda, tribo e religião, é quantificado pelo Régulo, chamado de Homem Grande que, sendo o chefe da tabanca, o negoceia com o comandante da Companhia, o divide entre as duas famílias.
Ouvi, entre outras, uma versão quantitativa de: três vacas; nove cabras; seis porcos e uma vintena de galinhas. Tem muita rifa que vender, este desgraçado! Mas a camaradagem é grande e tudo faz para voltarem todos.
Esta situação caricata tem a ver, sobretudo, com a psicossocial que aqui se desenvolve e apregoa aos sete ventos e, servindo de exemplo aos tropas, mostra às populações nativas que os brancos respeitam as suas famílias.
«Comentário de alguns: Se isto fosse lei na Metrópole, haveria que importar muito gado!»
Situações como esta não são únicas. Há camaradas que, não tendo modo de vida definido na Metrópole nem grande apego à família, acabam por ficar, «com elas ou sem elas», e refazem cá as suas vidas de uma maneira ou de outra.
Conheço um desses metropolitanos que, conserta o calçado da malta, reside numa palhota no começo da estrada de Santa Luzia, até já adquiriu os hábitos dos locais; andrajoso como eles e comendo de cócoras a ‘bianda’¹ da gamela com as mãos. 

Ando todos os dias a tomar injeções e umas pílulas. Continuo com esta dor no peito e desconfio que o médico não acertou com a receita. Transpiro muito, canso-me ao mínimo esforço e ultimamente tenho dormido muito mal.

Recebi há dias uma encomenda dos meus pais com o material de desenho que lhes tinha pedido. Tenho desenhado alguma coisa, mas muito pouco.

O meu amigo furriel, quando regressou da Metrópole, trouxe-me 500 escudos que lhos entregou o meu Pai para me dar.
        Ainda não os destroquei e quero ver se tão cedo não os faço em trocos, senão… lá se vão, como manteiga em nariz de cão.
500 escudos em dinheiro do Continente valem aqui, em dinheiro local, 600 escudos e creio que, nas outras Províncias Ultramarinas, também. Creio que, a desvalorização na moeda das Províncias, foi uma medida criada por Salazar, para evitar que os capitais sejam transferidos, por causa da guerra, para a Metrópole ou outro país.
Amanhã é dia de pré e vou receber uma ninharia.
Ontem, houve um programa de variedades, no campo de jogos, com elementos angolanos, mas não fui ver. Fui-me deitar, porque me doíam as pernas por causa das injeções que ando a tomar.
Há dias que os passo otimamente bem, outros porém, pessimamente mal. Vivo, praticamente, sempre, num estado ansioso e enervado. Por vezes, a dor que sinto no peito causa-me mal-estar.
Amanhã talvez vá ver o mesmo programa de variedades ao aeroporto. Fui convidado, hoje, por um camarada que lá trabalha no SPM.

 
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¹ [Vianda.]