30 de Março
Quinta-feira, 21h30
Depois de um longo
período de ausência, lembrei-me hoje que à muito não escrevia neste diário. Se
continuar com ausências como esta, deixará de ser um diário para ser um
mensário. Também, neste período de tempo, não fosse um caso de alguma forma
insólito para o qual contribuí para ajudar a resolver o imbróglio que a seguir
vou descrever, pouco ou nada de importante haveria para narrar.
Este é um daqueles acontecimentos que, invariavelmente, tem
de vir parar à volta das mesas dos cafés e que, pela sua parte hilariante, é
digno de registo.
Andavam, à volta das mesas, uns tantos camaradas a angariar
dinheiro através da venda de umas rifas que sorteavam um rádio da marca
Hitachi, daqueles comprados nas lojas dos libaneses que abundam por aí, dizendo
que era para ajudar um camarada «metido em maus lençóis ».
Este camarada, terá “tirado
o cabaço”, (tirado os «três
vinténs»), a uma bajuda, (rapariga muito
jovem),
e, para não ser obrigado a ficar com
ela para o resto da vida, poder embarcar com
a sua Companhia que está prestes a regressar à Metrópole, terá de pagar em
género, ao pai e ao Homem Grande, a
usurpação da castidade da bajuda que
de nenhuma forma pode devolver.
Este pagamento, em género, tem a ver com a importância
social do pai da bajuda, tribo e
religião, é quantificado pelo Régulo, chamado de Homem Grande que, sendo o chefe da tabanca, o negoceia com o comandante da Companhia, o divide entre
as duas famílias.
Ouvi, entre outras, uma versão quantitativa de: três vacas;
nove cabras; seis porcos e uma vintena de galinhas. Tem muita rifa que vender,
este desgraçado! Mas a camaradagem é grande e tudo faz para voltarem todos.
Esta situação caricata tem a ver, sobretudo, com a psicossocial que aqui se desenvolve e
apregoa aos sete ventos e, servindo de exemplo aos tropas, mostra
às populações nativas que os brancos respeitam as suas famílias.
«Comentário de alguns: Se isto fosse lei na Metrópole,
haveria que importar muito gado!»
Situações como esta não são únicas. Há camaradas que, não
tendo modo de vida definido na Metrópole nem grande apego à família, acabam por
ficar, «com elas ou sem elas», e
refazem cá as suas vidas de uma maneira ou de outra.
Conheço um desses metropolitanos que, conserta o calçado da
malta, reside numa palhota no começo da estrada de Santa Luzia, até já adquiriu
os hábitos dos locais; andrajoso como eles e comendo de cócoras a ‘bianda’¹ da gamela com as
mãos.
Ando todos os dias a tomar injeções e umas pílulas.
Continuo com esta dor no peito e desconfio que o médico não acertou com a
receita. Transpiro muito, canso-me ao mínimo esforço e ultimamente tenho
dormido muito mal.
Recebi há dias uma encomenda dos meus pais com o material
de desenho que lhes tinha pedido. Tenho desenhado alguma coisa, mas muito
pouco.
O meu amigo furriel, quando regressou da Metrópole,
trouxe-me 500 escudos que lhos entregou o meu Pai para me dar.
Ainda não os destroquei e quero ver se tão cedo não os faço
em trocos, senão… lá se vão, como
manteiga em nariz de cão.
500 escudos em dinheiro do Continente valem aqui, em
dinheiro local, 600 escudos e creio que, nas outras Províncias Ultramarinas,
também. Creio que, a desvalorização na moeda das Províncias, foi uma medida
criada por Salazar, para evitar que os capitais sejam transferidos, por causa
da guerra, para a Metrópole ou outro país.
Amanhã é dia de pré e vou receber uma
ninharia.
Ontem, houve um programa de variedades, no campo de jogos,
com elementos angolanos, mas não fui ver. Fui-me deitar, porque me doíam as
pernas por causa das injeções que ando a tomar.
Há dias que os passo otimamente bem, outros porém,
pessimamente mal. Vivo, praticamente, sempre, num estado ansioso e enervado.
Por vezes, a dor que sinto no peito causa-me mal-estar.
Amanhã talvez vá ver o mesmo programa de variedades ao
aeroporto. Fui convidado, hoje, por um camarada que lá trabalha no SPM.
¹
[Vianda.]
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