quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Já se fala no embarque



        1968
25 de Agosto
Domingo, 13h00



   Hoje faço 25 anos. Mais um aniversário que aqui passo nesta vida bastarda, insípida, sem cor, cinzenta e estúpida que tarda em chegar ao fim. Sem um tostão na algibeira, um meu camarada de serviço ofereceu-me uma garrafa de vinho verde para acompanhar o almoço.

Ontem recebi a encomenda que estava à espera. Veio por barco, despachada pelos serviços da Cruz Vermelha Portuguesa, (CVP), e por isso é que demorou a chegar. Como que para compensar a espera, para além do material, trazia um bom naco de presunto e, na secção, por volta das 22 horas, eu e o Manuel Dias, fizemos uma ceia acompanhada de vinho verde.
Neste momento estou no café Tamar com o meu camarada e amigo ‘Manel’ que me convidou para ir com ele até ao quartel de engenharia, onde está ‘hospedado’, petiscarmos um pouco de presunto e salpicão da terra dele acompanhado com vinho verde. Não aceitei, devido ao meu estado de alma. Preferi voltar à secção, para ficar sós no sussurro do silêncio com os fantasmas da noite, e continuar com o trabalho que tenho entre mãos.
Ontem de tarde iniciei um retrato a pastel de um camarada o qual vou dar-lhe hoje os últimos retoques. Assim, sendo esta a minha vida a vida da minha alma, pode ser que, no meio dos traços e rabiscos, esqueça o dia de hoje um pouco triste e pense que para o ano já cá não estarei, graças a Deus. 
Para o ano, neste dia de aniversário, não sei como vou estar. Provavelmente estarei às voltas com o emprego. Espero bem já estar a trabalhar. Dê por onde der, tenho de me ‘esfarrapar’, tenho de fazer esse esforço. Não posso esmorecer. Tenho de manter a esperança, como diz o velho ditado; «quem procura sempre alcança». Uma coisa será certa; se Deus quiser já estarei no meu meio ambiente e só isso já chega para me animar.

Já se fala no embarque. Provavelmente, lá para o fim de Outubro ou princípio de Novembro. Só em pensar que faltam apenas dois meses e pouco mais, já muito me consola e alegra o espírito.
Quando nos cruzamos o tema das conversas é de que já falta pouco e qual será o barco que nos vai levar de regresso. Alguns avançam que iremos de avião, por sermos poucos.
Em princípio, regressaremos todos os que vieram neste grupo de rendição individual.
Lembro-me, passados poucos dias daqui ter chegado, de me terem dito que a minha Companhia de destino tinha regressado do ‘mato’ e se encontrava na cidade em vésperas de embarcar para a metrópole, por ter terminado a comissão de serviço. Parece que o tempo não passou. Parece que foi ontem. Parece que foi há muito tempo. Já lá vão perto de dois anos. É muito tempo. Mesmo muito tempo, para uma vida que dura tão pouco.  

Já que, no segundo parágrafo deste capítulo, mencionei o nome da Cruz Vermelha, devo aqui mencionar também que, e a exemplo do MNF, as mulheres desta instituição desempenham um trabalho importante no apoio moral e material às tropas combatentes, principalmente aos mutilados da guerra.
Pelo que contam alguns camaradas tem a secção de Bissau, como sua dirigente, uma bondade de senhora que é a esposa do senhor general António de Spínola, governador e comandante-chefe desta Província). Senhora que muitos soldados acarinham de Mãe. 
Alguns camaradas em aflição, deslocam-se à secção da Cruz Vermelha e abeiram-se dela para lhes valer, implorando-lhe que interceda junto das chefias, e em alguns casos do general, para obterem uma licença de regresso à Metrópole, nos TAM, a fim de se juntarem à família que se reveza junto ao leito do Pai ou da Mãe a esvair-se da vida às portas da morte.
Esta senhora trata os soldados como se fossem seus filhos; afaga-lhes, com a sua mão, o rosto e os cabelos com ternura, transmitindo-lhes palavras de conforto e coragem. Estes, lembram-se dos afetos da sua Mãe, deixam pender a cabeça no seu ombro, aquecem, por instantes, o coração e a alma e choram comovidos pelo carinho e saudades, beijando-lhe as mãos.

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Tão jarreta como a outra flor



        
       1968                                                                    
       11 de Agosto
        Domingo, 20h00


   Secção. Estou sozinho. Os meus camaradas de serviço e o Jorge Guimarães saíram à pouco indo às suas vidas. Eu aqui fiquei e assim que acabar de escrever esta narrativa, fardo-me e vou para o quartel.

Ontem à tarde e hoje vesti-me à civil para tirar umas fotografias. Neste momento estou bastante enervado porque comecei a desenhar e não consegui fazer algo que jeito tivesse.

O Guimarães trouxe-me correio mas nem isso me conseguiu acalmar, para mais que as notícias também não são muito boas. A minha Mãe há quase um mês que me despachou uma encomenda com material de desenho e ainda a não recebi. Fiquei zangado e cometi a estupidez de escrever um aerograma à minha Mãe, como se ele tivesse culpa, coitada.
Ela, para me acalmar, pobre Mãe, enviou-me 20 escudos, amortalhados em papel químico, dentro de um aerograma, sem o Pai saber. Porque, se soubesse, seria o fim do mundo lá em casa.
Diz o meu irmão, José Maria, no aerograma que me escreveu, que o nosso «velho» está cada vez mais cruel. Fartou-se de massacrar as infelizes, quando soube que eu pedi o material de desenho.       
O meu irmão está de licença, foi a casa e sabendo do que se estava a passar, apressou-se a comprar outro material e enviou-o por um avião dos TAP.
As notícias da minha namorada, também não são muito animadoras. Alguma gentinha, lá do sítio, anda a encher-lhe a cabeça para nos separar e pelo conteúdo das suas cartas ela está confusa e indecisa.

O capitão C. Álvares foi-se embora da secção e para o lugar dele veio um major tão jarreta como a outra flor…. 

Ontem à noite fui ver um programa de ilusionismo protagonizado pelo ‘conde d’Aguillar’¹ que anda em digressão pelo Ultramar.
Creio que nunca irei esquecer-me de, a dada altura do espectáculo, após um número de magia ter falhado, creio que de propósito, o conde ter contado uma história em jeito de metáfora após a vaia e a pateada da plateia.
 Num lapso de tempo, houve-se a voz do conde no balcão e toda a plateia se vira para trás. Uns a vaiar:
 - Uh! … Uh! … Uh! …
Outros a bradarem de espanto:  
 - Oh! … Oh! … Oh! …
Então, ele começa a contar a história de quando era rapazinho distrair a família com as suas pantominas:
 - Um dia fui passar férias para a quinta do meu Avô, ali para os lados de Alenquer, e soltei os burros que estavam fechados dentro de uma cerca. O Avô, zangado, pergunta-me aonde é que estão os burros ao que eu respondo, com a minha traquinice de então, que os fizera desaparecer. Então o Avô, com uma das suas frases sábias, diz-me:
 - Olha meu neto, fica sabendo, esses burros multiplicar-se-ão ao longo da tua vida e, hão-de perseguir-te sempre, para qualquer lado que vás!
Ao mesmo tempo o conde esticava o braço na direcção da plateia e com o indicador afilado, apontava:
- Ei-los aqui!

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¹ [Nome de cartaz do artista, ilusionista consagrado de seu nome Saul Fernandes de Aguillar.]              
                    

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Sempre gostei de engrenagens e de as desenhar


        1968
30 de Julho
        Domingo, 14h00

 
 
   Café Internacional. Não sei o que isto tem de internacional. Só se é pelos internacionais do Continente. Não devo fazer juízos que eu de «internacionalidades» nada sei. Também eu sou um dos que veio das berças para Lisboa e daí só saí para vir pr’á tropa. O ambiente até que é convidativo, porque tem sempre uma boa música de fundo. Neste momento ouve-se Amália Rodrigues em «Tudo isto é Fado».
 
        Amanhã é o meu último dia de férias. Já sinto saudades do convívio do trabalho. Vamos lá a ver como será o novo chefe da secção. Os meus camaradas, que encontro sempre na rua, dizem-me que não é flor que se cheire.
        E que mais tenho eu para contar. Apenas que tenho andado “teso”, como vai sendo hábito. O contrário é que seria de admirar. Vão-me valendo os camaradas mais abonados, até receber dos trabalhos que tenho feito.
        Cada vez, as matérias do curso estão a ser mais complicadas e o CETOP já me informou que, a partir deste mês, por motivos que lhes são alheios, somente me vão enviar um caderno de exercícios por mês, o que me desanima bastante. A ser assim, só terminarei o curso próximo do fim do ano que vem. O curso é composto de 45 cadernos com várias matérias, como já referi, e, neste momento, ainda me faltam 19.
        Vai acontecer que, quando me candidatar a um emprego, terei de dizer que ando a acabar o curso, o que é bem diferente de dizer, que tenho o curso concluído.
        Este curso de desenho é muito completo, já o disse, e, com ele terminado, estou confiante que poderei arranjar um emprego nesta área. Vamos lá ver se os meus planos não saem furados porque também acredito que outros que, para além desta aptidão, possuam um curso industrial ou comercial tenham outras chances. Embora tivesse frequentado qualquer destes cursos, por diferentes motivos, um deles o serviço militar não fui para além do segundo ano.
        Descobri esta veia para o desenho técnico agora e, não sendo ainda tarde, tenho de fazer dela o meu cavalo de batalha. Não tenho outra alternativa. Os empregos que tive antes não vingaram e a cadeira que deixei vazia num escritório, para assentar praça, não estará à minha espera após uma ausência de mais de quatro anos.
        Esta vocação que agora descobri creio que terá um pouco a ver com máquinas; sempre gostei de engrenagens e de as desenhar. Quando era pequeno desmanchava tudo que tivesse rodas. Lembro-me de ter desmanchado um relógio de mesa, só porque tinha duas figuras que se moviam com o tic-tac da máquina. Lembro-me bem das personagens que as figuras representavam. Ai se me lembro…! Levei uma valente sova. Ao montá-lo sobraram peças e o relógio teve de ir para o relojoeiro.
   
                        Caderno da revisão dos exercícios do curso de desenho do CETOP

        Quando andava na escola e me perguntavam o que queria ser eu dizia que queria ser mecânico de automóveis e, então, havia pessoas, incluindo a minha professora, que me diziam que isso era muito bom e que um dia ainda poderia vir a ser maquinista dos comboios.
        Animado por esta ideia quando saí da escola, com os meus 12 anos, tive o meu primeiro emprego, (trabalho), no ferreiro da terra a dar ao fole da forja e a malhar na bigorna o ferro em brasa.
Dizia o ‘Manel ferreiro’ à minha Avó:
        - Se o rapaz quer ser mecânico, tem de começar por aqui!
        Mais tarde, quando vim para Lisboa, com treze para 14 anos, comecei, então, a trabalhar na mecânica de automóveis como aprendiz e a ganhar, à semana, 5 escudos por dia, com direito a semana-inglesa, tendo, anos mais tarde, já como primeiro ajudante de mecânico, abandonado a profissão que agora não estará de todo excluída a hipótese de a retomar.
 O meu amigo Mário escreveu-me há dias a perguntar-me se eu queria que ele me matriculasse na Escola de Artes Decorativas de António Arroio, aonde tinha andado perto de dois anos e que interrompi por ser mobilizado. Escrevi-lhe a agradecer-lhe e que, quando regressasse, logo decidiria.
 

Eh, patrão foi pa tira nódoa

 
        1968
        20 de Julho
Quinta-feira, 16h30
 

 
 
       Estou neste momento no café Avenida. Este café teve grandes alterações e agora tem uma esplanada muito agradável.
 
        Encontro-me ainda de licença e como é natural ando vestido à civil. Faço a minha vida normal só que, neste período de tempo, não faço serviços no quartel nem na secção. Depois da secção fechar é que volto para fazer os meus trabalhos do curso e outros artísticos.
        Presentemente ando a fazer um pequeno projeto para o meu padeiro. Devo terminá-lo hoje à noite e amanhã entrego-o já com cópias.
        O padeiro é um bom amigo. É ele que me fornece o pão e empresta-me dinheiro, quando ando na penúria. Por este trabalho vou levar-lhe 250 escudos a abater aos 500 escudos que lhe pedi emprestados, no princípio deste mês, para mandar fazer umas calças decentes porque estas, com que ando, já estão muito coçadas.
        Este mês, já fiz seis retratos e tenho mais três para fazer.
        Já estive a fazer cálculos à vida e, depois de saldar as dívidas, este mês é o único em que fico com um saldo positivo. Oxalá, os restantes meses que me faltam, fossem assim. Os meses que ainda me faltam para acabar a comissão são uma eternidade e preciso de juntar algum dinheiro para comprar umas lembranças nas lojas dos chineses, sírios ou libaneses que proliferam pela cidade.
 
        Ontem, ao meio-dia, quando me dirigia do quartel para a secção, para almoçar, aconteceu-me um episódio que não tendo piada não deixa de ter o seu lado caricat0.
        Tive em tempos uma lavadeira para me lavar a roupa a qual despedi por me ter estragado umas calças que, de tanto as esfregar, para tirar uma nódoa de azeite, fez-lhe um buraco. Chamei-lhe a atenção para o que fez e a sua resposta foi:
        Eh, patrão, foi pa tira nódoa!                                     
        É evidente que não lhe paguei, explicando-lhe que agora teria de comprar outras calças. Não sei se compreendeu ou não ou se compreendeu fez que não, a avaliar pelo banzé que fez do outro lado da rede.
        Ao passar na estrada de Santa Luzia, muito longe de pensar o que me iria acontecer, uma “nharra” com uma bacia à cabeça, dirige-se a mim fazendo um destes chinfrins, na sua linguagem, que nada percebi.
        Ela caminhava a par de outra, e, provavelmente, carregada a avaliar pela bacia que segurava à cabeça, eu estuguei o passo e consegui ver-me livre dela. Lembrei-me, entretanto, que seria a lavadeira que me fez o buraco nas calças e fiquei surpreendido como, ao fim de tanto tempo, me reconheceu, para mais, vestido à civil.
        Pensava eu que me tinha livrado dela quando, a correr e a praguejar, já sem a gamela à cabeça, se atravessa à minha frente desabrida a crescer para mim.
        Estava neste momento a entrar na cidade próximo de um posto de administração local e abordei o cipaio que estava de sentinela para a deter. O guarda era um “nharro”, como ela, falavam o mesmo dialeto, entenderam-se os dois e eu fiquei sem perceber nicles de nada.
        Com o escarcéu da mulher o administrador do posto veio à porta e muito delicadamente pede-me para entrar. Ela não se calava e o administrador mandou-a entrar também.
        Entramos para um gabinete e aí expliquei o motivo desta contenda. Ele explicou-me que já tinha percebido, pelo que ouviu, e disse-me que não tendo nada a ver com o assunto, uma vez que eu era militar, aconselhou-me a pagar-lhe o que lhe devia, «por ser uma coisa de nada», e poder tornar-se numa complicação.
        Segui o seu conselho, apesar de me sentir intimidado. Lembrei-me da «psico», saquei de uma nota de 50 escudos e entreguei-a em mão ao administrador que, por sua vez, a entregou à mulher.