sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Eh, patrão foi pa tira nódoa

 
        1968
        20 de Julho
Quinta-feira, 16h30
 

 
 
       Estou neste momento no café Avenida. Este café teve grandes alterações e agora tem uma esplanada muito agradável.
 
        Encontro-me ainda de licença e como é natural ando vestido à civil. Faço a minha vida normal só que, neste período de tempo, não faço serviços no quartel nem na secção. Depois da secção fechar é que volto para fazer os meus trabalhos do curso e outros artísticos.
        Presentemente ando a fazer um pequeno projeto para o meu padeiro. Devo terminá-lo hoje à noite e amanhã entrego-o já com cópias.
        O padeiro é um bom amigo. É ele que me fornece o pão e empresta-me dinheiro, quando ando na penúria. Por este trabalho vou levar-lhe 250 escudos a abater aos 500 escudos que lhe pedi emprestados, no princípio deste mês, para mandar fazer umas calças decentes porque estas, com que ando, já estão muito coçadas.
        Este mês, já fiz seis retratos e tenho mais três para fazer.
        Já estive a fazer cálculos à vida e, depois de saldar as dívidas, este mês é o único em que fico com um saldo positivo. Oxalá, os restantes meses que me faltam, fossem assim. Os meses que ainda me faltam para acabar a comissão são uma eternidade e preciso de juntar algum dinheiro para comprar umas lembranças nas lojas dos chineses, sírios ou libaneses que proliferam pela cidade.
 
        Ontem, ao meio-dia, quando me dirigia do quartel para a secção, para almoçar, aconteceu-me um episódio que não tendo piada não deixa de ter o seu lado caricat0.
        Tive em tempos uma lavadeira para me lavar a roupa a qual despedi por me ter estragado umas calças que, de tanto as esfregar, para tirar uma nódoa de azeite, fez-lhe um buraco. Chamei-lhe a atenção para o que fez e a sua resposta foi:
        Eh, patrão, foi pa tira nódoa!                                     
        É evidente que não lhe paguei, explicando-lhe que agora teria de comprar outras calças. Não sei se compreendeu ou não ou se compreendeu fez que não, a avaliar pelo banzé que fez do outro lado da rede.
        Ao passar na estrada de Santa Luzia, muito longe de pensar o que me iria acontecer, uma “nharra” com uma bacia à cabeça, dirige-se a mim fazendo um destes chinfrins, na sua linguagem, que nada percebi.
        Ela caminhava a par de outra, e, provavelmente, carregada a avaliar pela bacia que segurava à cabeça, eu estuguei o passo e consegui ver-me livre dela. Lembrei-me, entretanto, que seria a lavadeira que me fez o buraco nas calças e fiquei surpreendido como, ao fim de tanto tempo, me reconheceu, para mais, vestido à civil.
        Pensava eu que me tinha livrado dela quando, a correr e a praguejar, já sem a gamela à cabeça, se atravessa à minha frente desabrida a crescer para mim.
        Estava neste momento a entrar na cidade próximo de um posto de administração local e abordei o cipaio que estava de sentinela para a deter. O guarda era um “nharro”, como ela, falavam o mesmo dialeto, entenderam-se os dois e eu fiquei sem perceber nicles de nada.
        Com o escarcéu da mulher o administrador do posto veio à porta e muito delicadamente pede-me para entrar. Ela não se calava e o administrador mandou-a entrar também.
        Entramos para um gabinete e aí expliquei o motivo desta contenda. Ele explicou-me que já tinha percebido, pelo que ouviu, e disse-me que não tendo nada a ver com o assunto, uma vez que eu era militar, aconselhou-me a pagar-lhe o que lhe devia, «por ser uma coisa de nada», e poder tornar-se numa complicação.
        Segui o seu conselho, apesar de me sentir intimidado. Lembrei-me da «psico», saquei de uma nota de 50 escudos e entreguei-a em mão ao administrador que, por sua vez, a entregou à mulher.

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