sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Tenho “lerpado” com a correspondência


 
        1967
        25 de Maio
        Quinta-feira, 20h00 
 

     É dia de Corpo de Deus. Estou no café Avenida e enquanto continuo a escrever este diário, (que não é tão diário), o meu camarada e amigo Silvestre foi comprar bilhetes para irmos ao cinema ver «55 dias em Pequim», de Nicholas Ray; com Charlton Heston, Ava Gardner, David Niven….  
        Está uma grande ventania, que leva tudo à frente, e bastante fresco. Tudo indica que vai chover.
        O meu chefe de serviço tem andado, ultimamente, muito mal-humorado. Por qualquer insignificância, «pega por tudo e por nada», com qualquer um de nós. Tanto faz ser soldado como sargento. Está a revelar-se uma pessoa sem personalidade alguma. A boa impressão que eu tinha dele desapareceu e, também, já não estou muito bem na sua boa graça. Talvez eu, também, faça um pouco por isso não fazendo, algumas vezes, as coisas como ele quer.       
        Ontem, eram sete horas e 30 minutos, estava eu e o meu camarada e colega de serviço, Araújo, sentados numa pequena esplanada do café Pireza, que fica defronte da porta de entrada da secção, quando ele passou transportado por uma viatura. Abriu a secção e foi trabalhar. Então, quando chegaram as 0it0 horas, entramos na secção e os seus bons dias, depois de nós o saudarmos, foram: «Porque é que vós, em vez de estardes ali repimpados no café, não estais na secção a trabalhar? Se saís mais cedo à hora da saída, deveis compensar esse tempo!»
        O recado devia de ser para mim, por saber que eu tenho uma chave da secção. Calámo-nos e começamos a trabalhar mas, falando para os meus botões, se saímos mais cedo é para arranjarmos boleia e chegarmos ao quartel a horas das formaturas do almoço e do jantar.
        Entendo que na tropa à que amochar e não resmungar mas, como chefe da secção, bem que poderia requisitar uma viatura para nos transportar no ir e vir destas andanças, como fazem as outras secções exteriores ao quartel.
        É uma maçada para nós, debaixo de um calor abrasante e desgastante, ter que apanhar boleia, quatro ou seis vezes por dia, para nos deslocarmos da cidade para o quartel e deste para a cidade e sempre com a preocupação de cumprir os horários. 
 

Pequena esplanada do café Pireza – «Sala de espera da Secção»

        O meu amigo e camarada Silvestre já regressou e não arranjou bilhetes. Este cinema é a única sala de espetáculos da cidade e qualquer filme, mesmo com muita rodagem, ou que não preste, é sempre uma estreia. A tropa que vagueia pela cidade, sem nada que fazer, não havendo outro tipo de diversão, vai ver o mesmo filme duas e três vezes: uns, para passar o tempo; outros, porque é novidade, para eles.
        UDIB, União Desportiva Internacional de Bissau, é o nome desta casa de espetáculos e pertence a um clube de futebol desta cidade com o mesmo nome.
 
Tenho “lerpado” com a correspondência. Esta manhã, somente recebi uma carta da minha namorada.
        O meu amigo Mário ainda não me respondeu a dizer-me alguma coisa sobre o concurso de desenho.
 O meu camarada fez-me gastar tinta e pôs-me um pouco triste. Afinal sempre arranjou bilhetes para o cinema. 
 

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