sábado, 28 de outubro de 2017

Armaram-se eles próprios em cavaleiros


        1967
        06 de Junho
Terça-feira, 19h30
 
 

 
     Estou na secção aonde o meu camarada e amigo Silvestre  trabalha. Um pequeno cubículo com prateleiras cheias de pastas e papéis até ao teto e meia dúzia de velhas secretárias sob o ar, empoeirado e macilento, tangido por uma grande ventoinha dependurada do mesmo teto.                                                         
        Enquanto eu escrevo neste diário, o meu amigo lê «qualquer coisa» de confidencial, no meio de toda esta barafunda de papéis.
        O meu amigo interrompeu-me para ver «esta coisa» confidencial; um relatório sobre as atividades terroristas nesta Província.    
        Pelo pouco que li neste relatório com o carimbo de reservado e, resumindo, sem entrar em detalhes, é que estamos perante um grande movimento de subversão com grandes apoios do exterior, não só dos países de África, como de países da Europa e de Leste e que, o inimigo está a ganhar cada vez mais vantagem sobre nós, tanto no terreno ocupado, com nas incursões bélicas, como no campo diplomático a nível político. E ainda que, a tendência desta situação, à medida que o tempo passa, é para nós cada vez mais desfavorável e que, se não tomarmos medidas menos convencionais, correremos o risco de perder esta guerra. Mais grave ainda é que, no próprio seio das nossas Forças Armadas, a nível de chefias subalternas, começa a sentir-se alguma movimentação de descontentamento e intranquilidade, havendo, também, patentes da hierarquia superior que não acreditam n0 fim desta guerra sem passar por uma resolução política. Entendo que, para não entrar em outros pormenores, será melhor ficar por aqui.

        No Sábado passado, ao fim da tarde, fui mais dois camaradas ao restaurante Piquenique comer frango assado, especialidade da casa, preparado com um molho especial à base de óleo de palma¹.
       Ainda estávamos a meio, e mal tínhamos começado a saborear o petisco, quando soaram tiros de rajadas de metralhadoras e o zumbido das balas a cortar o ar e a tracejarem sobre as nossas orelhas.
        Pensámos de imediato que era algum ataque terrorista e cada um, aliás todos que estavam na esplanada, tratou de se abrigar, uns dentro do restaurante, outros, os mais afastados e perto da contenda, agachados detrás do cascabulho das ostras, que, àquela hora da tarde já os havia, em montanhas coniformes, erigidos casca a casca aqui e ali, junto às mesas, mais altos do que qualquer dos devoradores deste molusco que o deglutam, empurrado garganta abaixo, à força do peso da cerveja. 
        As coisas acalmaram. Ouviu-se muito barulho de vozearia e berros, vindo a verificar-se que afinal tudo não passou de uma escaramuça das grandes entre duas tropas especiais que resolveram brincar às guerras; os Fuzileiros e os Paraquedistas.
        Constou-se, de seguida, que a refrega terá começado no Estádio Sarmento Rodrigues, não muito longe do restaurante aonde nos encontrávamos, após um desafio de futebol. Os «paras», (Paraquedistas), por rixas passadas, correram à pancada os «fuzos», (Fuzileiros Navais), até ao quartel. Estes, uma vez dentro da sua própria casa, armaram-se eles próprios em cavaleiros da desordem, pegaram em armas e, «em pé de guerra», rechaçaram os «paras» que, dando corda às botas, esticaram as gambetas, deram à sola e puseram-se a milhas.
        Este incidente parece ter sido logo abafado pela PIDE e pelo Comando Territorial, pois nunca mais se soube nada. Nem o jornal, nem a rádio anunciaram o que é que fosse. Nem ninguém mais falou nisto, quer nas notícias de jornal da caserna, quer nas conversas à mesa dos cafés. Fica-se com a impressão de isto parecer não estar assim tão mau, porque para sentirmos a guerra é preciso faze-la entre nós².
        Desde que cá cheguei, é a segunda vez que ouço tiros na rua.
        Logo no início de cá estar, quando caminhava numa rua paralela à avenida central, ouvi tiros e vozes a gritar: 
       Arredem-se! Arredem-se!
        E vejo um oficial miliciano, deitado no chão, a apontar uma G3 e disparar sobre um cão grande que espumava e fugia desnorteado. O cão caiu morto e a tropa que vinha no jipe, de onde saiu o oficial, recolheram-no e levaram-no. Soube depois que o bicho era portador da raiva. 
Amanhã é dia de correio e estou mesmo a ver que vou “lerpar”. Ultimamente tenho recebido pouco correio. Acabei de escrever um aerograma muito lamecha à minha vizinha, Mariana, com a rotineira “canção do bandido”. Ela não aceitou o pedido que lhe fiz para ser minha madrinha de guerra. Diz-me que já tem namorado e não pode arriscar o seu casamento que está para breve. Se aceitasse, diz-me na sua carta, correria o risco de perder o noivo e de vir a apaixonar-se pelo afilhado, pois que, normalmente, é a fatalidade das madrinhas de guerra e que nem sempre dá em casamento.


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¹ [Azeite extraído da palmeira.]
² [Soube-se mais tarde que terão morrido dois Paraquedistas.

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