1967
06 de Junho
Terça-feira, 19h30
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Estou na secção
aonde o meu camarada e amigo Silvestre trabalha.
Um pequeno cubículo com prateleiras cheias de pastas e papéis até ao teto e
meia dúzia de velhas secretárias sob o ar, empoeirado e macilento, tangido por
uma grande ventoinha dependurada do mesmo teto.
Enquanto eu escrevo neste diário, o meu amigo lê «qualquer coisa» de confidencial, no meio de toda esta barafunda de papéis.
O meu amigo interrompeu-me para ver «esta coisa» confidencial; um relatório sobre as atividades
terroristas nesta Província.
Pelo pouco que li neste relatório com o carimbo de
reservado e, resumindo, sem entrar em detalhes, é que estamos perante um grande
movimento de subversão com grandes apoios do exterior, não só dos países de
África, como de países da Europa e de Leste e que, o inimigo está a ganhar cada
vez mais vantagem sobre nós, tanto no terreno ocupado, com nas incursões
bélicas, como no campo diplomático a nível político. E ainda que, a tendência
desta situação, à medida que o tempo passa, é para nós cada vez mais desfavorável
e que, se não tomarmos medidas menos convencionais, correremos o risco de
perder esta guerra. Mais grave ainda é que, no próprio seio das nossas Forças
Armadas, a nível de chefias subalternas, começa a sentir-se alguma movimentação
de descontentamento e intranquilidade, havendo, também, patentes da hierarquia
superior que não acreditam n0 fim desta guerra sem passar por uma resolução
política. Entendo que, para não entrar em outros pormenores, será melhor ficar
por aqui.
No Sábado passado, ao fim
da tarde, fui mais dois camaradas ao restaurante Piquenique comer frango assado, especialidade da casa,
preparado com um molho especial à base de óleo de palma¹.
Ainda estávamos a meio, e mal tínhamos começado a saborear
o petisco, quando soaram tiros de rajadas de metralhadoras e o zumbido das
balas a cortar o ar e a tracejarem sobre as nossas orelhas.
Pensámos de imediato
que era algum ataque terrorista e cada um, aliás todos que estavam na
esplanada, tratou de se abrigar, uns dentro do restaurante, outros, os mais
afastados e perto da contenda, agachados detrás do cascabulho das ostras, que,
àquela hora da tarde já os havia, em montanhas coniformes, erigidos casca a
casca aqui e ali, junto às mesas, mais altos do que qualquer dos devoradores
deste molusco que o deglutam, empurrado garganta abaixo, à força do peso da
cerveja.
As coisas acalmaram. Ouviu-se muito barulho de vozearia e
berros, vindo a verificar-se que afinal tudo não passou de uma escaramuça das
grandes entre duas tropas especiais que resolveram brincar às guerras; os
Fuzileiros e os Paraquedistas.
Constou-se, de seguida, que a refrega terá começado no
Estádio Sarmento Rodrigues, não muito longe do restaurante aonde nos
encontrávamos, após um desafio de futebol. Os «paras», (Paraquedistas), por rixas passadas, correram à pancada
os «fuzos», (Fuzileiros
Navais),
até ao quartel. Estes, uma vez dentro da sua própria casa, armaram-se eles
próprios em cavaleiros da desordem, pegaram em armas e, «em pé de guerra», rechaçaram os «paras» que, dando corda às botas, esticaram as gambetas, deram à
sola e puseram-se a milhas.
Este incidente parece ter sido logo abafado pela PIDE e pelo
Comando Territorial, pois nunca mais
se soube nada. Nem o jornal, nem a rádio anunciaram o que é que fosse. Nem
ninguém mais falou nisto, quer nas notícias de jornal da caserna, quer nas
conversas à mesa dos cafés. Fica-se com a impressão de isto parecer não estar
assim tão mau, porque para sentirmos a guerra é preciso faze-la entre nós².
Desde que cá cheguei, é a segunda vez que ouço tiros na
rua.
Logo no início de cá estar, quando caminhava numa rua
paralela à avenida central, ouvi tiros e vozes a gritar:
Arredem-se! Arredem-se!
E vejo um oficial
miliciano, deitado no chão, a apontar uma G3 e disparar sobre um cão grande que
espumava e fugia desnorteado. O cão caiu morto e a tropa que vinha no jipe, de
onde saiu o oficial, recolheram-no e levaram-no. Soube depois que o bicho era
portador da raiva.
Amanhã é dia de correio e estou mesmo a ver que vou “lerpar”. Ultimamente tenho recebido
pouco correio. Acabei de escrever um aerograma muito lamecha à minha vizinha,
Mariana, com a rotineira “canção do
bandido”. Ela não aceitou o pedido que lhe fiz para ser minha madrinha de guerra. Diz-me que já tem
namorado e não pode arriscar o seu
casamento que está para breve. Se aceitasse, diz-me na sua carta, correria o
risco de perder o noivo e de vir a apaixonar-se pelo afilhado, pois que, normalmente, é a fatalidade das madrinhas de guerra e que nem sempre dá
em casamento.
¹ [Azeite extraído da palmeira.]
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