1968
29 de Março
Sexta-feira, 21h00
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Hoje “lerpei” com o correio. Também, o que
teve mais importância para mim tinha-o recebido na Quarta-feira.
Agora, o que estou a estranhar é a falta de correspondência
do CETOP. Já há quase dois meses que
lhes enviei os exercícios de desenho para correção e ainda os não recebi de
volta.
A Lupe também não me escreve. Ou se fartou de mim, ou
aconteceu o pior, que é aquilo que eu penso que tenha acontecido e já descrevi
em capítulo anterior.
A minha namorada é que, ultimamente, tem sido infalível. Escreve-me
todas as semanas e eu respondo-lhe, igualmente todas as semanas, com todo o meu
amor.
Sinto que agora começo a gostar mais dela. As palavras
escritas nas suas cartas têm agora outro sentido, fazendo-me sentir que me ama.
Chegamos já a falar sobre o nosso casamento. Não fosse a situação em que me
encontro e as sérias dificuldades presentes, talvez a ideia se concretizasse.
Poderíamos casar, até, por procuração. Seria para mim muita felicidade, quando
chegasse a Portugal tê-la nos braços como minha esposa.
Isto é uma pura veleidade. Não passa de uma grande tolice.
Quando sair daqui, nem sequer tenho uma situação definida no que toca a
emprego. O lugar que tinha no emprego e deixei para vir para a tropa nem sequer
estará à minha espera e meios próprios de subsistência não tenho. Os meus pais
não permitiriam e, então, os dela também não.
Fiz compreender a minha situação à minha namorada e que
esta passaria depois a ser a situação de ambos uma vez que, também ela, não tem
meios próprios de subsistência.
Se Deus quiser em Novembro próximo, terminarei a minha
comissão de serviço no Ultramar. Espero, também, estar a acabar o meu curso de
desenho e, espero ainda, com os conhecimentos e prática adquiridos arranjar
emprego nesta área.
Para grande surpresa minha, na última carta que recebi dos
meus pais, dizem-me que o meu irmão mais novo, ainda sem cumprir o serviço
militar, vai casar-se. Então eu, aproveitando esta «deixa», na resposta a esta carta, fiz suavemente uma abordagem
sobre o que achavam se me casasse por meio de uma procuração.
Tudo tem corrido normalmente bem, desde a última vez que
escrevi neste diário, apenas, ultimamente, ando a dormir muito mal. Há noites
em que nem sequer durmo quatro horas. Não sei o que será isto. Durante o dia
tudo se passa normalmente e à noite, quando me deito, por volta das onze horas,
meia-noite, começo a pensar
em várias e variadíssimas coisas que já passaram e outras que, sei lá, podem
vir a passar-se. Isto durante horas a fio, até o espírito se fatigar,
adormecendo com estes pensamentos e acordando com pesadelos.
Estou agora a cair em mim e a refletir no que escrevi nos
parágrafos anteriores. Então se eu estou bem, pelo
menos
julgo estar, e tenho estes pesadelos, o que seria se
fosse atrás daquelas ideias tolas. Não dormiria mais, com certeza. «Aguenta
pianinho pá, não vá o casamento por procuração dar-te a volta ao miolo e passar
a ser uma preocupação».
É costume dizer-se que «nas
costas dos outros vemos as nossas». Andam camaradas em tratamento
psiquiátrico: um; porque a mulher lhe escreveu a dar-lhe a notícia de que já é
Pai e passa o tempo, nos corredores do hospital, a contar pelos dedos e o diabo
das contas não batem certo, outro; porque recebeu carta de um amigo a dizer-lhe
que, por várias vezes, viu a mulher dele a entrar numa pensão rasca de Lisboa,
sempre com o mesmo gajo e pensa que, se calhar, esse gajo é o amigo que lhe
escreve, outro; é a mulher que, escreve a dizer-lhe, mudou de emprego e o novo patrão gosta muito dela, está sempre
a aumentá-la, faz muitas horas extraordinárias, e logo começa a cabecinha a
trabalhar, outro, ainda; quando andava perdido no ‘mato’, comeu uma raiz qualquer e perdeu o tesão e agora não sabe
se quer regressar.
São assim, algumas das histórias que se contam por aqui.
Elas não se esgotam neste parágrafo, mas são o suficiente para se perceber
alguns dos, entre muitos, danos causados por esta guerra.
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