terça-feira, 28 de novembro de 2017

Nas costas dos outros vemos as nossas


        1968
29 de Março
Sexta-feira, 21h00

 
 

    Hoje “lerpei” com o correio. Também, o que teve mais importância para mim tinha-o recebido na Quarta-feira.         
        Agora, o que estou a estranhar é a falta de correspondência do CETOP. Já há quase dois meses que lhes enviei os exercícios de desenho para correção e ainda os não recebi de volta.   
        A Lupe também não me escreve. Ou se fartou de mim, ou aconteceu o pior, que é aquilo que eu penso que tenha acontecido e já descrevi em capítulo anterior.
        A minha namorada é que, ultimamente, tem sido infalível. Escreve-me todas as semanas e eu respondo-lhe, igualmente todas as semanas, com todo o meu amor.
        Sinto que agora começo a gostar mais dela. As palavras escritas nas suas cartas têm agora outro sentido, fazendo-me sentir que me ama. Chegamos já a falar sobre o nosso casamento. Não fosse a situação em que me encontro e as sérias dificuldades presentes, talvez a ideia se concretizasse. Poderíamos casar, até, por procuração. Seria para mim muita felicidade, quando chegasse a Portugal tê-la nos braços como minha esposa.
        Isto é uma pura veleidade. Não passa de uma grande tolice. Quando sair daqui, nem sequer tenho uma situação definida no que toca a emprego. O lugar que tinha no emprego e deixei para vir para a tropa nem sequer estará à minha espera e meios próprios de subsistência não tenho. Os meus pais não permitiriam e, então, os dela também não.
        Fiz compreender a minha situação à minha namorada e que esta passaria depois a ser a situação de ambos uma vez que, também ela, não tem meios próprios de subsistência.
        Se Deus quiser em Novembro próximo, terminarei a minha comissão de serviço no Ultramar. Espero, também, estar a acabar o meu curso de desenho e, espero ainda, com os conhecimentos e prática adquiridos arranjar emprego nesta área.
        Para grande surpresa minha, na última carta que recebi dos meus pais, dizem-me que o meu irmão mais novo, ainda sem cumprir o serviço militar, vai casar-se. Então eu, aproveitando esta «deixa», na resposta a esta carta, fiz suavemente uma abordagem sobre o que achavam se me casasse por meio de uma procuração.
 
        Tudo tem corrido normalmente bem, desde a última vez que escrevi neste diário, apenas, ultimamente, ando a dormir muito mal. Há noites em que nem sequer durmo quatro horas. Não sei o que será isto. Durante o dia tudo se passa normalmente e à noite, quando me deito, por volta das onze horas, meia-noite, começo a pensar em várias e variadíssimas coisas que já passaram e outras que, sei lá, podem vir a passar-se. Isto durante horas a fio, até o espírito se fatigar, adormecendo com estes pensamentos e acordando com pesadelos.
       
        Estou agora a cair em mim e a refletir no que escrevi nos parágrafos anteriores. Então se eu estou bem, pelo menos julgo estar, e tenho estes pesadelos, o que seria se fosse atrás daquelas ideias tolas. Não dormiria mais, com certeza. «Aguenta pianinho pá, não vá o casamento por procuração dar-te a volta ao miolo e passar a ser uma preocupação». 
        É costume dizer-se que «nas costas dos outros vemos as nossas». Andam camaradas em tratamento psiquiátrico: um; porque a mulher lhe escreveu a dar-lhe a notícia de que já é Pai e passa o tempo, nos corredores do hospital, a contar pelos dedos e o diabo das contas não batem certo, outro; porque recebeu carta de um amigo a dizer-lhe que, por várias vezes, viu a mulher dele a entrar numa pensão rasca de Lisboa, sempre com o mesmo gajo e pensa que, se calhar, esse gajo é o amigo que lhe escreve, outro; é a mulher que, escreve a dizer-lhe, mudou de emprego e o novo patrão gosta muito dela, está sempre a aumentá-la, faz muitas horas extraordinárias, e logo começa a cabecinha a trabalhar, outro, ainda; quando andava perdido no ‘mato’, comeu uma raiz qualquer e perdeu o tesão e agora não sabe se quer regressar.
        São assim, algumas das histórias que se contam por aqui. Elas não se esgotam neste parágrafo, mas são o suficiente para se perceber alguns dos, entre muitos, danos causados por esta guerra.

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