terça-feira, 28 de novembro de 2017

A correr Portugal de lés-a-lés com as botas da tropa nos pés

 
        1968
01 de Março.
Sexta-feira, 21h00.
 
 
     Ontem foi o dia dos azares. Para mim, é claro. Quando as coisas correm mal, é só a nós.
        Depois de ter recebido o pré, e por isso cheguei mais tarde à secção, o meu chefe como queria pegar comigo e não 0 podendo fazer por chegar atrasado barafust0u, encrespado contra mim, por ter encontrado um montão de boletins de recrutamento, ainda por preencher à máquina, para serem enviados às unidades de procedência.
        Respondi-lhe, educadamente e em sentido, que uma parte da culpa seria minha mas que, e o meu capitão sabe bem, os boletins têm de ser primeiro selecionados e este serviço depende do sargento Laurentino que teve o acidente. Apeteceu-me perguntar-lhe por que ainda não arranjou alguém para o substituir mas achei mais acertado ficar calado. Isto é tropa e com a tropa não se brinca!  
 
        Hoje, para além de outras, recebi uma carta de um meu ex-colega de trabalho e amigo João Videira.
        Recebi uma carta, também, dos meus pais com 100 escudos intercalados em papel químico.
        O meu Pai, segundo entendo na sua carta, não está muito contente comigo, por pensar que estou a gastar muito dinheiro. Como posso eu evitar de gastar, com tanta despesa!
 
        Hoje tenho andado um pouco mal-humorado e o motivo deste humor reside no problema financeiro. Ontem mesmo recebi o pré e a massa não me chega para satisfazer os meus compromissos.
        Há camaradas que me devem algum dinheiro. Se ao menos eles me pagassem, sempre de momento ficaria mais desafogado.
        Eu tenho o hábito, quando peço emprestado, de saldar as dívidas logo que tenho dinheiro. Mas há alguns camaradas que é preciso andar constantemente a lembrar-lhes. Há um deles, que me deve 100 escudos há mais de um ano e até já deixei de lhos pedir por me sentir envergonhado sabendo eu, pela vida que faz, bem que mos poderia pagar.
        Alguns camaradas, sabendo do meu desespero, aconselham-me a desistir do curso, por ser ele que me leva a fatia maior. Outros vão mais longe; dizem que é dinheiro mal gasto, por este tipo de ensino não ser oficial e o diploma não garantir qualquer aptidão.
        Embora, em fases criticas como esta, muitas vezes, o desânimo se apodere de mim, eu uso todas as minhas forças para vencer o desalento que me invade o espírito e faço por conseguir ultrapassar a crise.
        Penso que, em todo o caso, poderia reduzir os exercícios a dois cadernos por mês. Sempre pouparia metade mas, também, não acabaria o curso na altura da desmobilização e não estaria tão apto, depois, para arranjar emprego.
 
        Á tarde fui comprar bilhete para ir ao cinema e de regresso fui ‘apanhado’ pela PM por trazer a barba e o cabelo grandes.
        De facto assim era. Eles tinham razão. Aceitei, sem comentar. Passaram-me uma guia de apresentação, para me apresentar o mais rápido possível ao oficial dia.
        Vim para a secção e de seguida fui ao barbeiro do quartel. As instalações da PM ficam ao lado e fui ter com um camarada que conseguiu desenrascar-me. Uf…! Mais uma vez me livrei das garras destas feras e, provavelmente, de uma carecada ou de umas patrulhas “à Benfica”.
        Em lembrar-me que, por causa de um estrugido tão simples e estúpido como este, ao fim de cumpridos 28 meses de tropa, faltando-me apenas 0it0 para a “peluda”, vim aqui cair neste desterro… 
        Faltam-me, agora, também, oito meses para acabar de cumprir esta condenação a 24 meses de apodrecimento da alma neste degredo.
        Todos fazemos coisas estúpidas e desatinamos de vez em quando. A tropa tem destas coisas: «por dá cá aquela palha»; ao mínimo «pisar do risco», cai-nos o fogo e o inferno em cima. É a disciplina! É o RDM! (Regulamento da Disciplina Militar).
        Não foi nada! Foi, tão-somente, «aquela porrada da ordem» que, ainda agora, mal me sinto acordado do turpor profundo que se abateu sobre mim e me condenou a este tormento neste destino de entorpecimento. Não é nada! Apenas, são mais 16 meses de tropa, a somar aos 36 meses já obrigatórios. Não é muito tempo, quando se tem a nossa idade, mas, sempre são 16 meses a menos, nas nossas vidas. Tempo este, que o tempo dirá das feridas do corp0 e da alma das sequelas traumáticas aqui contraídas.
 
        Para muitos, principalmente, oficiais e sargentos do quadro dos três ramos das Forças Armadas, esta guerra é um negócio, de muita forma, rentável. Muitos deles, são autênticos papa comissões. Colecionam comissões de serviço como quem coleciona ‘milenas de D. Maria’¹. Há os que chegam a comprar e trocar comissões de serviço a preço de bom dinheiro, fazendo cá os seus negócios paralelos e investindo os seus ganhos em terrenos e propriedade horizontal na Metrópole.
        Ouvi falar em casos de negócios mal resolvidos; indivíduos que pagam a outros para irem «à guerra» no seu lugar, acabando estoutros, não raras vezes, passado algum tempo, por serem mobilizados e os primeiros, por ironia dos azares, em alguns casos com o tempo do serviço militar quase cumprido, acabarem por ir, no lugar destes, «dar o corpo ao manifesto».
        Também, para a simples praça, apesar de tudo, não é mau de todo, se atendermos a vários aspectos positivos. O mancebo, na generalidade, oriundo das berças, abrutado e embrenhado para lá dos confins, por detrás do Sol-posto, que apenas comia uma refeição completa nos dias de festa, quando comia e quando as havia, nem sabia servir-se da faca e do garfo, somente abandona a santa terrinha para ir às «sortes» e incorporar nas fileiras do Exército para cumprir voluntariamente, (entre aspas), o serviço militar, tem a oportunidade única de conhecer terras e outras gentes do seu país que, de outra forma, provavelmente, não teria, não fosse ele obrigado, já disse; voluntariamente, a abandonar o seu meio rural, onde sobrevivia alabregado do pastoreio e do amanho das terras.
        Com uma guia de marcha, o mancebo começa por viajar de comboio, em terceira classe, coisa que muitos não experimentaram antes, e, ao ir às «sortes», (inspeção militar), passa a conhecer a primeira vila ou cidade.  
        Passado um ano, novamente com guia de marcha, e de trouxa aviada, torna a viajar de comboio, comodamente sentado em bancos de ripas de madeira, e conhece a segunda, ao assentar praça para fazer a recruta.
        Novamente com guia de marcha, passados cerca de dois meses, após a recruta concluída, torna a viajar de comboio, no conforto da terceira classe, até à terceira terra onde está instalada a unidade da especialidade que vai tirar.
        Ao fim de, novamente, cerca de dois meses retoma a viagem de comboio até à quarta vila ou cidade onde está instalada a unidade de acolhimento passando, aí, «a pronto».
        Neste vai pra lá e pra cá, é um «corra Portugal de lés-a-lés com as botas da tropa nos pés» (…)²
        Até que chega o dia daquilo que pensa ser uma certeza desde a primeira hora ao conhecer uma quinta cidade, para onde vai, igualmente com guia de marcha, depois da passagem «a pronto», incorporar uma companhia ou um batalhão de mobilizados, aguardando por outra guia de marcha, para um destino incerto. Chegou o temível momento do embarque para África. Nome apenas conhecido dos livros da Instrução Primária; aqueles que a fizeram, no devido tempo, porque muitos vêm fazê-la à tropa.
        Também a viagem de barco, para não falar a de avião, e a imensidão das águas do mar, é um acontecimento novo. Para mim, por exemplo, as poucas vezes que andei de barco, foi na travessia do rio Tejo para Cacilhas.
        Entretanto os ímpetos do mancebo foram vergados; dobrada a sua vontade, os seus modos ficam amansados e o seu carácter é fortalecido.
        A par da autodisciplina, é-lhe incutido o espírito de missão; capacidade de esforço, resistência e sofrimento; de fraternidade e camaradagem. Vontade de cumprir as tarefas mais árduas e arriscadas, mesmo com o risco da própria vida, juntamente com maneiras e o respeito pelas hierarquias. Total observância da «bíblia» dos militares que   nunca leu nem nunca lhe foi lida é o RDM.
        Chegado o fim do serviço militar cumprido, com a “peluda” à vista, muitos arranjam trabalhos ou empregos com profissões de acordo com as suas especialidades, como: maqueiros; enfermeiros; condutores-auto; mecânicos-auto; radiotelegrafistas; escriturários; cozinheiros; padeiros; etc., etc., entre muitas outras. E se destes o seu comportamento tiver sido exemplar: a caderneta militar limpa de vermelhos e, para mais achega, uns louvores averbados; umas medalhas de honra e mérito; etc., etc., então, ouro sobre azul; emprego certo. Muitos já não voltarão ao meio de onde vieram e ficam-se pelas cidades e vilas.
        Outros, não tendo adquirido as mesmas aptidões, para não voltarem à sua parvalheira e terem garantidas as três refeições diárias, «metem o Chico», (metem o requerimento), para ficarem na tropa. Estes são, na gíria, conhecidos por «lateiros».  

                                                               * * * 
* É vulgar dizer-se daqueles que se aproximavam da idade de ir à tropa e que eram revessos ou “corrécios”:
          − Deixem lá que eles são tortos, mas vão para onde os endireitam!
       − Saem de lá mais direitinhos que um fuso!³                                                                  
                                                                   
                                                                      * * *
¹ [Chamavam-se de ‘milenas’ ou ‘donas Maria’ as notas de 1.000 escudos; 1.000$00 ou de 1 conto de réis,  à data, com a efígie de D. Maria II.
Durante o período da guerra do Ultramar, circularam as notas de 1.000$00 com as efígies de D. Filipa de Lencastre, D. Dinis, D. Maria II e D. Pedro V. À época, estas eram as notas mais altas do nosso sistema monetário, que hoje equivaliam a cinco Euros. Quem fosse detentor de 1.000 destas notas, (mil contos de réis), era milionário.
Na tropa, quem tivesse «umas ‘milenas’», era rei e senhor.

² [Expressão muito utilizada por nós nesta época mas que não era original.]

³ [Alguns! Que outros, insurretos de todo, ficam mais tortos ainda. Com o acumular de graves infracções ao RDM têm como destino, entre outros, o presídio militar do Forte da Graça, em Elvas.
Condenados a trabalhos forçados, carregam nos costados, encosta abaixo, encosta acima, sacos com calhaus ou barris com água, ora meios cheios, ora meios vazios, de «mola vergada», até serem vergados os seus ímpetos rebeldes. Mesmo assim, ainda os há daqueles que, ‘enxertados em corno de cabra’, «antes quebrar que torcer». No fim, são expulsos como indesejáveis à tropa e devolvidos à sociedade. É esta que tem de os suportar, pois foi esta que os pariu.]

⁴ [Os castigos graves eram averbados a tinta vermelha.]
                                                             * * *
Há-os, igualmente, torcidos de «marca corneta» que a família não tendo mão neles, e querendo ver-se livre deles, correm aos quartéis a pedir que os incorporassem nas fileiras mais cedo, na esperança da tropa os amansar. Com a falta de rapazes prá guerra a tropa corre a suas casas, incorpora-os à força com o rótulo de insurreto, e, com uma guia de marcha de «carne pra canhão», vão diretamente cumprir o serviço militar ao Ultramar, num quartel qualquer no meio do ‘mato’, bem perto da guerra.
    Há nesta tropa filho de muita mãe.
 

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