quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Como este duro silêncio custa a suportar

                 
        1968
        16 de  Junho
Domingo, 20h00

 

   Café Pireza. Presentemente tenho andado um pouco adoentado, creio que com o princípio de paludismo. Na Quinta-feira, saí da secção já com um pouco de febre. Depois, para mais ajuda, ainda estive de serviço de Ronda à Cidade, que é, dizendo a verdade, uma grande estopada. Saí deste serviço era uma hora da manhã e mal me tinha de pé. Estive durante todo o dia de Sexta-feira na cama, somente me levantando para ir ao médico. Sábado ao meio-dia já me encontrava melhor, embora um pouco fraco porque na Sexta-feira não comi coisa alguma. Hoje já estou melhor, mas ainda fraco. Continuo com pouco apetite.
 
        Na Sexta-feira, recebi uma carta do meu irmão João, trazendo dentro uma nota de 20 escudos, para beber umas cervejas à felicidade do seu casamento.
        Recebi, também, carta da Mãe da minha namorada, a falar-me da filha e do nosso casamento. Diz-me que, a decisão mais acertada, é de facto esperar pelo meu regresso à vida civil e ter um emprego garantido. Cuidados de uma Mãe.
 
        O Centro de Ensino Técnico e Orientação Profissional, (CETOP), escreve-me a comunicar que, a partir de agora, somente vai enviar-me um caderno de exercícios por mês.
        Isto, assim, vai transtornar-me nos meus planos. Vou escrever-lhes a contar-lhes um pouco da minha vida a ver se me compreendem e continuam a enviar-me os quatro cadernos mensais.
 
        Agora tenho mais um chefe novo, também capitão, com o curso de majores. Este é que é, segundo ouço, o substituto do capitão Campos. Traz em mente grandes inovações, (como se tivesse descoberto a pólvora), e os planos já estão a ser elaborados. O capitão Carvalho ainda continua, mas em segundo plano.
 
 Poucas horas depois:

       Como este duro silêncio custa a suportar. Há pouco tempo encontrava-me com vários amigos e agora encontro-me só. Absolutamente só, com os meus fantasmas habituais, oprimido, neste ar bafiento, entre estas paredes cheias de prateleiras atafulhadas de pastas e papéis.
        Uma forte nostalgia invadiu o meu coração e quase começo a chorar. Estou só e ninguém me vê. Este é um de alguns momentos da minha vida muito triste. É um sentimento movido pela ausência e saudade.
        Os meus parceiros da marmita e companheiros de trabalho foram-se embora. É nestes momentos que sentimos o valor do companheirismo. As tricas, as zangas, as lutas, já não têm qualquer sentido. Contam, agora, os momentos bons que tivemos juntos. Quem me dera, agora, o barulho de outrora!   
        Entretanto, saí para espairecer desta melancolia, tornando a voltar pouco tempo depois. A rua também estava só, quase deserta, sem ninguém. Naquele perímetro passavam não mais de dois ou três transeuntes que se reconhecia, pela linguagem, serem militares vestidos à civil. A cidade fica vazia, após o regresso dos militares aos seus quartéis. O mesmo acontece com as cidades e vilas da Metrópole, se calhar até em todas as cidades do mundo, onde há quartéis. As fardas são que dão movimento às nossas vilas e cidades. Até parece que o país está fardado. Quando as fardas regressam aos quartéis as cidades ficam vazias, ficam na quietude, no marasmo, sem movimento e voltam os fantasmas da noite, não os fantasmas da secção, mas os outros; os dos medos, os das incertezas, os dos receios, os das crenças, os da imaginação. Eles andam por aí, por todo lado, como almas penadas sedentos de perversidades. Eles perscrutam, por entre o ar, por entre as frinchas, o cogitar dentro dos lares com as portas e janelas bem trancadas não vão eles ou outros espíritos malignos entrar com a má notícia e perturbar a paz aparente.       
        Caminhei um bocado, como se andasse perdido, em direção ao cais e encontrei, por mero acaso, um camarada amigo que, no decorrer do nosso diálogo, me pareceu, também ele, andar consumido com os seus pensamentos.
        A serenidade das águas a ondear à volta dos cascos dos barcos velhos atracados ao, não menos velho, ancoradouro em madeira; o sereno ondular da prata líquida do estuári0, sob um luar magnificente e lá longe o horizonte de recorte mal definido entre a imensidão do firmamento e as águas do Atlântico que me trouxerem até aqui e que, daqui, haverão de ser as mesmas a levarem-me de volta, se Deus quiser.
        A noite já vai longa e, a ausência de vivalma, o sussurro das ondas, a calmaria do ambiente, convidam à reflexão e meditação.
        Para lá, muito longe, do horizonte, que acabei de descrever, a minha casa também está muito só, vazia e, provavelmente, a esta hora, com portas e janelas bem trancadas. Dentro daquelas paredes, que antes eram movimento, vida e alegria à mistura com algumas amofinações, deve haver, agora, uma grande melancolia inconsolável com aquelas duas almas gastas pelo tempo, sozinhas durante o dia, e outra que regressa do trabalho ao fim do dia, que são: a minha Mãe; a minha Avó; o meu Pai.
        O meu irmão mais novo casou-se, o do meio está na tropa e eu estou aqui, agora, a terminar este capítulo solidário com o mesmo sentimento de solidão e tristeza.

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