quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Porventura, já estarei cacimbado?

 
        1968
25 de Maio
Sábado, 21h00

 
 
    Secção. Estive muito tempo a olhar para ti minha querida. Amo-te muito.
        Mas, para quem estou eu a falar! Porventura, já estarei cacimbado? Oh! Dá-me vontade de rir! Não! Apetece-me antes chorar.
        Estava a falar com a minha namorada. Aliás, com a sua fotografia. É bonita. Gosto muito dela. O cacimbo, ao fim de algum tempo, provoca estes delírios. Daqui, a distância à loucura, é menor que um passo. Porém, vou continuar. É a minha companhia de todos os dias e fala-me duas vezes por semana, através das palavras escritas nas suas cartas. Escreve mal e expressa-se pior, mas eu também o não faço melhor. Quando se ama, tudo o resto é acessório. É como diz o velho ditado: «Quem feio ama bonito lhe parece».
        Já me disse, em uma das suas cartas, que lhe foi entregue o serviço de chá com figurinhas chinesas e que, não cabe em si de contente, por ter gostado muito.
 
        Tenho a impressão que me vou sentir um pouco só. O amigo Torres, lá se vai embora, na próxima Segunda-feira. O Direito, meu conterrâneo, também já foi e, a mim, ainda me faltam cerca de seis meses. 
        Vou ficar aqui sozinho dentro destas quatro paredes que não basta saturarem-me o espírito e a alma durante o dia, quanto mais à noite, ainda. Mas sou obrigado. Obrigado, isto é; sou eu que me obrigo a mim próprio. Só aqui, no barulho do silêncio, com os fantasmas da noite; o ruído do caruncho a roer a madeira, as traças a traçarem o papel, a rastolhada dos ratos à procura de cama para os ninhos, poderei fazer os meus trabalhos.
        Também já não terei o rádio transístor para ouvir música, durante as horas que aqui fico. A música tem sido de todos, de quantos a queiram ouvir, mas o rádio que a transmite é do Torres e ele não quer desfazer-se dele. Vai levá-lo consigo, como companheiro das horas que não passam. Das horas tristes e solitárias.
        Vou ter de arranjar paciência para conseguir vencer estes 160 dias que ainda me faltam e que, quanto mais se aproximam do fim, mais difíceis se tornam.
        Só em pensar que hoje fiz, precisamente, 19 meses que saí de Lisboa já me anima.

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