quinta-feira, 30 de novembro de 2017

A correr com as macas para a pista dos hélios

 
        1968
        16 de Abril
Terça-Feira, 21h00
 

 
    Secção. No Domingo, ao passear pela cidade, encontrei dois camaradas amigos que vieram do ‘mato’ para visitarem camaradas seus conhecidos que estão feridos no hospital. Não é que não tivesse que fazer mas, para espairecer, aproveitei a boleia e fui com eles.
        Estes camaradas, que fomos visitar, estavam em uma enfermaria destinada a doentes com ferimentos ligeiros. Tinham várias mazelas no corpo, provocadas por estilhaços de granadas, que são sanadas com pequenas cirurgias.
        Á saída da enfermaria para o corredor esbarramos com um camarada enfermeiro nosso conhecido e com ele fomos visitar outras enfermarias que, mais valia não tivesse-mos ido, de tão perturbados que ficamos. Mas a curiosidade foi mais forte.
        Pelos corredores fomos vendo e sentindo a dor traumatizante de camaradas mutilados no corpo e na alma: uns, sem uma perna, arrastando-se em muletas; outros, sem as duas pernas rolando em cadeiras de rodas; outros, sem pés, sem um braço ou uma mão. Muitos deles, à espera de próteses encomendadas em clínicas na Alemanha. Uma calamidade humana!
        Nas enfermarias, o que vimos e sentimos foi ainda pior: camaradas com o corpo todo enfaixado de ligaduras da cabeça aos pés, que mais pareciam múmias; pernas e braços engessados, levantados e esticados ao alto; uns, ligados só com o coto da perna ou do braço; outros, com parte do corpo, senão o corpo todo, em carne viva que mais pareciam estar virados do avesso; outros… Visões horripilantes entrecortadas por gemidos dilacerantes. 
        Na última enfermaria vimos um indivíduo de cor numa lástima indescritível e, admirados, perguntamos se era algum terrorista.
        Não, é tropa das nossas fileiras. Esses estão em enfermarias isoladas. Respondeu o enfermeiro.
        Antes de sairmos, no cruzamento de dois corredores, o enfermeiro explica-nos: 
        Neste corredor, ao fundo, estão a ver aqueles PM? É a ala do hospital, com várias enfermarias com “turras” com ferimentos da mesma gravidade que viram nas enfermarias dos nossos camaradas.
        Prosseguindo, disse:
        Estes “turras" são abandonados pelos deles, aquando dos combates, e recolhidos pelas nossas tropas que, ao mesmo tempo, vão sendo tratados e interrogados pelo serviço de informações da PIDE.
        Para completar este cenário de horrores, quando estávamos cá fora, a caminho do regresso, vimos maqueiros e enfermeiros numa correria, curvados, com as macas para a pista dos hélios ao mesmo tempo que iam chegando, um a um, três helicópteros dos Comandos com evacuados.
        Todos eles traziam feridos. Talvez mortos. Não soubemos. Nem a gravidade dos feridos, nem se haveria mortos. Este acesso, mais que compreensível, estava vedado. Somente, de longe, poderíamos imaginar. 
        Lembro-me de quando cá cheguei, depois de poucos dias passados, ter narrado nos primeiros capítulos deste diário um depósito de viaturas militares todas empilhadas, torcidas e retorcidas dos embates das minas e das morteiradas, de ter comentado:
        Se esta amálgama está neste estado, em que estado estarão os que nela se transportavam!

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