quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Adeus até ao meu regresso


«Adeus até ao meu regresso»! Ressoava, por sua vez, o clamor daqueles que partiam

Navio ALFREDO DA SILVA

1966
26 de Outubro
Quarta-feira, 22h00



Encontro-me, neste momento, no interior de um acanhado compartimento de ferro mal iluminado com cerca de uma centena de tarimbas armadas toscamente umas sobre as outras. Muitos dos meus camaradas dormem ou tentam dormir, outros, fazem barulho, cantando e saltando. À minha frente há uma escada tosca de madeira com pouco mais de uma dúzia de degraus. Subindo-a, espraiando o olhar, não vejo mais do que a ténue escuridão da noite, com o luar a incidir sobre a imensidão da água luzidia de reflexos ondulantes e prateados do Oceano Atlântico, a proa do navio balançando sobre as ondas e, num céu cinzento prateado de uma serena melancolia, a lua e as estrelas por companhia. Nas primeiras horas de viagem enjoei e vomitei tudo quanto ingerira antes. Agora, sinto-me bem. O comer é razoável e em quantidade. Amanhã, quando acordar, já devo avistar terra; a ilha da Madeira. Espero que nos deixem sair.

       Há 38 horas que navego sobre as águas da minha desdita, deixando tudo para trás. Depois das lágrimas à despedida, dói-me agora as saudades que me apertam o coração e me invadem a alma, desde a partida. Ainda perdura na memória a imagem viva do ondular de lenços brancos, agitados por centenas de braços, no ar, sobre os rostos de faces engelhadas e tristes marejados de lágrimas que brotam das almas que ficam à espera do regresso dos que agora partem.



«Na Hora da Despedida»
Uma Mãe com os seus três filhos
        Já o navio ia barra fora, rumo ao oceano, e, ao longe, os lenços brancos fundem-se em um manto diáfano de alva espuma sobre uma massa negra abafando os ais e o clamor da dor lancinante daquele: «Adeus meu filho!» «Que Deus te abençoe e proteja!» «Não sei se voltarei a ver-te!»
«Adeus até ao meu regresso»! Ressoava, por sua vez, o clamor daqueles que partiam, rumo ao desconhecido, com destino marcado.

Nunca sonhei ter de viajar tanto e, assim, tão indesejavelmente. Estou a recordar-me, de uma vez, num jardim de Lisboa, há muito tempo, uma cigana me ler a sina, quando ia acompanhado de uma namorada, e dizer-me, entre outras «ditas e desditas», que no meu destino estava marcada uma longa viagem para além-mar. Isto já é um mau prenúncio. Quando se tem 19 anos, 17… ou mesmo 15, e pela frente se esbarra com o espectro da incorporação militar, todas as esperanças, sonhos e venturas da nossa mocidade se desmoronam, só em pensar que somente com muita sorte é que não iremos ‘bater com os costados’ à guerra do Ultramar.

Neste prelúdio da nossa vida há muita inquietude e muitos sonhos para realizar mas, com os fantasmas do medo, fica-se bloqueado. Aliás, o próprio país parece estar bloqueado, soturno. O país todo está na tropa. Uma metade do país está fardada, cinzenta; a outra metade: as Mães, as noivas, está de negro…, de luto. A juventude, condenada à mansidão, ficou paralisada, sorumbática a cismar mansinha, a ‘bater a bola baixa’.

Para quê desvendar sonhos e desbravar caminhos! Não vale a pena! Há o serviço militar para cumprir e a guerra colonial pela frente. A própria sociedade não nos deixa progredir. As Mães não deixam casar as filhas, (casam-nas depois com os traumas latentes). Os patrões não dão emprego. Os estudos ficam interrompidos; os sonhos adiados ficam por acabar. A guerra é o centro das nossas vidas e a vida fica estropiada aqui. Inquietados, com redobrada preocupação da certeza de os seus filhos irem parar à guerra, a mente dos nossos progenitores consome-se, começando muito cedo a andar às voltas com o pensamento, a ruminar na forma de como livrar os filhos desta martirizante e fatídica tragédia.

«Uns vão para a França e Alemanha, a toda a pressa; outros vêm para a guerra, rapidamente e em força».             



Sem comentários:

Enviar um comentário