terça-feira, 2 de agosto de 2016

Introdução


Estas memórias foram escritas a partir de um diário após 50 anos dos acontecimentos manuscritamente narrados.

Com as facilidades das novas tecnologias procurei transcrever integralmente os factos nele narrados acrescentando, contudo, outros que ficaram profundamente gravados no meu espírito e ainda outros que, até ao momento presente, as vivências da escola da vida me aclarou, alterando, ainda, alguma pontuação e a composição de algumas frases que, apesar de todo este tempo passado e a preciosa ajuda  do velho "Torrinha", ainda não mereço um suficiente.  

Apesar de ter tido o azar de ir «parar» ao Ultramar tive, contudo, a sorte de não ir «bater com os costados no mato».
Tive, ainda, a sorte acrescida de ir desempenhar as funções da minha especialidade de amanuense¹ numa repartição na cidade e ter tempo disponível para fazer o que gostava tirando um curso de desenho que me valeu o começo de vida, com o início da minha carreira profissional, após a desmobilização.
Muitos não tiveram a mesma sorte. Pior que tudo, foram muitos os que não voltaram pelo seu próprio pé. Profundamente entristecido, presto-lhes aqui a minha sentida homenagem.
É com regozijo, mas ao mesmo tempo com alguma estupefação à mistura, que hoje vejo, através dos meios de comunicação, a cores tropas embarcarem, para cumprimento de missões militares, já rotulados com o epíteto de verdadeiros heróis e, serem recebidos, no regresso, em apoteose, após seis meses de ausência. As ansiedades e angústias daqueles que os esperam; o sorriso e a felicidade da alma, estampados nos rostos, dos que regressam …

E porque a memória não se apaga, volvidos estes 50 anos, lembro-me como se fosse hoje, como se fosse agora…, neste momento. As imagens estão vivas. Ficaram retidas no pensamento…, na alma e «... escrevo (aqui, estas memórias) para que me não vença o esquecimento»²     

Era o fim de uma longa manhã de Outono. O sol já declinava a caminho do horizonte, rompendo com dificuldade a neblina que se formava sobre o cais.
Desembarquei juntamente com centenas de militares, de um contingente que regressava. Não estava lá a comunicação social. Ou não existia, ou não era conveniente lá estar   se estava, era da cor da neblina: cinzenta… a preto e branco!
Estavam, isso sim, e disso recordo-me bem, entre as multidões que nos esperavam: as saudades que, 24 meses antes, ali tinham ficado na hora da partida nos rostos velados pela inquietação e ansiedades; as Mães e as viúvas; os órfãos e os ausentes …;a felicidade nos corações e na alma daqueles que se abraçavam com desmedida sofreguidão.

A neblina adensava-se cada vez mais. Do Tejo emanava uma brisa agreste que cortava o ar em direção à terra. Começava a arrefecer. Passado algum tempo, entre ansiedades, alegrias e tristezas, já quase todos tinham partido. Poucos restavam ainda, entre apertados abraços, no silêncio que a custo irrompia por entre a bruma fria de um começo de tarde. 
Comecei a afastar-me. Um trépido arrepio e tremor invade-me a medula e faz estremecer o meu corpo e esfriar a minha alma e, subitamente, não sei movido por que instintos, virei-me para trás, volvendo meia-volta sobre o tacão do calcanhar esquerdo, olhando na direção do navio que nos havia despejado. 
Estava a descarregar com os seus altos guindastes, como que abraçados por braços gigantes, estranhos volumes de contornos mal definidos envolvidos pela bruma já bastante densa. Baixei os olhos como que a varrer este entremeio e, junto ao paredão do cais, tão macabra visão vislumbrei. O meu coração bate ofegante ao mesmo tempo que um vento gélido, que irrompe da bruma, me corta o rosto e a respiração.
 Não contei. Eram dezenas; seguramente muito mais de uma centena espalhados pelo chão: uns, alinhados ali e acolá; outros, sobrepostos mais além. Eram os esquifes com os restos mortais dos que, «voltavam», assim; na horizontal, entre tábuas, sem vida, sem rosto, sem alma… com a mortalha da aura dos heróis. 
     
A memória dos homens depressa os esqueceu. Depressa esqueceu, e desdenhou, os que regressaram vivos. Desdenhou os seus heróis e o seu denodo; a sua glória e o seu garbo… e, assim, aos olhos das gerações desvirtuadas, somos malquistos. 

                                                          
 * * *
          
            Escreveu um poeta do meu país:
«O costume que há em Portugal de maltratar os vivos e (não)³ homenagear os mortos».

Outrora, breves palavras de um discurso:

«…não temos só o dever de honrar os mortos; temos também o dever de nos orgulharmos  dos  vivos».

¹ [Escriturário/dactilógrafo.]
² [Isabel Allende]
³ [Interjeição negativa do autor]



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