domingo, 21 de janeiro de 2018

O meu espírito de missão e vontade de cumprir



        1968
27 de Outubro
         Domingo, 22h00




     Esta manhã fiz o espólio de uma parte da roupa militar. Ontem recebi o pré e as ajudas de custo.
       Já tenho a certeza que embarco. O navio UÍGE deve atracar esta madrugada e, segundo previsto, levanta âncoras na noite de Quinta para Sexta-feira da semana que entra.
       Eu embarco nele. Posso afirmá-lo, com a graça de Deus. E daí a cinco dias estarei em minha casa. Estarei junto dos meus. Estarei junto dos meus amigos. Só em pensar nisto, o meu coração acelera e parece saltar para fora do peito.
       O meu chefe de serviço, major R. Júnior, propôs-me para um louvor, pelos serviços que eu prestei na secção durante o tempo de serviço. Ainda não saiu à ordem, mas já sei o seu conteúdo. O amigo e camarada Nora foi quem passou a proposta à máquina e fez uma cópia para mim.
        Modéstia à parte; é merecido o reconhecimento. Sei que o merecia e foi ingrato da parte de quem o esperava. Todos os meus camaradas e superiores o afirmaram. O major R. Júnior, apesar do seu temperamento retrógrado e tacanho, soube avaliar todo o meu desempenho no pouco tempo que estive sob a sua chefia; «o meu espírito de missão e vontade de cumprir». Fiquei surpreso, não esperava dele este reconhecimento¹


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¹ [Algumas semanas mais tarde vim a saber através da troca de correspondência com o meu camarada e amigo Nora que, ‘bateu’ à máquina esta proposta de louvor, este nunca foi publicado em ordem de serviço, pelo que, muito provavelmente, diz-me ele – a proposta ficou esquecida dentro da gaveta ou amarfanhada dentro do cesto dos papéis.  

         No momento fiquei desolado, triste e desapontado com a notícia. Senti como que um baque; como que se me tivesse caído a alma aos pés. Senti, por instantes, que fui vencido. Penso que não merecia esta desconsideração. No fundo, eu fiz o que é constado na proposta; mais do que normalmente é exigido a um simples escriturário, como consta. Não estava à espera desta perfídia. Assim como tão-pouco estava à espera de ser agraciado com um louvor. Mas, se ele viesse, já que havia sido proposto, sempre seria uma mais-valia: limpar-me-ia a tinta vermelha da caderneta militar e seria uma porta aberta na procura de um emprego. Contudo, a vida tem destas coisas! Coisas do destino! Ironia das coisas!    
       Resta-me, ao menos, o certificado que atesta o apreço pelos serviços prestados à Pátria e testemunho da minha presença nesta Província.
          Penso que este desmerecimento teve a ver com a forma de como para ali fui. Penso ainda que, muito provavelmente, o capitão Campos teria sido desaconselhado como o foi o major. Penso, ainda mais, que o mérito é para os heróis da frente de combate e não para os do ar condicionado.
         Embora ainda jovem, a vida já tinha-me ensinando alguma coisa; contudo, não tinha aprendido muito, confesso. Nessa altura, ainda era muito jovem e à medida que ia amadurecendo na peleja de todos os dias, muitas vezes, tive a oportunidade de compreender que o mérito não está, somente, naquilo que as pessoas fazem, mas, essencialmente, naquilo que elas são ou, pretensamente, aparentam ser e, com este juízo, fui concluindo:  ou lutava contra o modo das coisas; ou teria de me esforçar por ter outra atitude perante a vida.    
         Fui refreando, muito a custo, ao capricho das circunstâncias, o meu temperamento; a minha forma de ser e de estar. A minha forma de ver as coisas; de agir; de pensar; de lutar… nada me foi oferecido de bandeja, nem tão pouco me foi dada a oportunidade de escolher as armas com que lutei.
        Porém, com aquela idade, ainda não sabia bem o que fazer da vida. Concluo agora, todo este tempo passado, que a luta não foi fácil. Tive sempre de contar comigo próprio; tive eu que fabricar as minhas próprias armas para lutar e o bom senso nem sempre esteve presente: devíamos fazer coisas que não fazemos e, muitas vezes, acabamos por fazer o que não devemos; somos novos, temos o fogo na alma e queimamos-nos nas fogueiras que ateamos; há coisas que estão dentro de nós; há coisas que já nascem connosco; há coisas que fazemos e delas não nos podemos orgulhar.
         O meu carácter ter-se-á formado e enraizado à força de, na tenra idade, tanto pisar cobras e lagartos, pé descalço, entre vales e montes, à chuva e ao sol, ao vento e ao frio, com umas magras e míseras côdeas rijas de broa de milho na sacola que, para as tragar, tinha de as humedecer nos regos de água, revolta e cristalina, que escorria borbulhante das rochas, a guardar cabras e ovelhas. Porém, reconheço, a tropa tê-lo-á fortalecido e endurecido; conquanto não o vergara.
         Apesar de tudo, e embora «nem por vencido», «nem por convencido», com humildade confesso e penitencio-me de, perante imposições circunstanciais nos caminhos da vida por vezes atravancados de escolhos, nem sempre me ter norteado por uma postura que deveria ser a vertical.]    
                                                                                    «O homem é aquilo que ele faz»
                                                                                                                             A. Malrax                  

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