Viagem de
regresso – Navio UÍGE – Camaradagem à hora da refeição |
Ao fim de infindáveis sete dias de navegação, o navio UÍGE atracou ao paredão do cais da Rocha do
Conde de Óbidos, em Alcântara, ao fim
da manhã do dia seis de Novembro.
Muito cedo, ainda mal o sol raiava, começamos a vislumbrar,
a levante, uma silhueta mal definida envolta em neblina que atravessava
o Tejo apenas estando a descoberto, a estibordo e a bombordo, o alto das duas
torres, logo se ouvindo da malta, acabada de subir dos porões infectos, uma
explosão de algazarras esfuziantes de alegria:
É a Ponte! É a
Ponte…! É a Ponte Salazar!
Viva a “peluda”! Viva!
Viva! Olé, lé, lé…! Olé, lé, lé…!
A sua silhueta ia-se tornando mais visível à medida que o
navio se aproximava e, com grande ansiedade, todos esperávamos cruzá-la, mas
nunca mais era vencida a distância que nos separava, parecia até que o barco
tinha abrandado a velocidade.
Passado um tempo infinito, a proa do navio começava a
alcançar a medonha sombra transversal, ondulante, projetada na água, a jusante,
pelo efeito da luz da manhã e em silêncio, muitos de pescoço esticado, de nariz
pró ar, em grupinhos, junto aos mastros do navio aguardavam com expectativa o
cruzar dos mesmos sob a imponente estrutura de aço. Alguns diziam, cheios de
angústia, que o navio não vai passar e os mastros vão tocá-la. À medida que
cada um dos mastros a ia cruzando, para levante, havia uma grande manifestação
de júbilo expressa em vivas de alegria esfuziante, altos gritos de exaltação,
saltos e danças estonteantes:
Viva a Ponte
Salazar! Viva a “peluda”! Olé, lé, lé…!
Olé, lé, lé…!
Pouco depois, houve como que um total esmorecimento,
quebrando aquele encanto de felicidade, aumentando ainda mais a ansiedade que
envolvia os nossos corações, ao sabermos que o navio fundeava ao largo,
espalhando-se a notícia que por causa de outro navio que estava prestes a
partir. Para maior angústia e desespero, começava a formar-se uma névoa sobre
as águas do Tejo, envolvendo o navio e as nossas almas.
Para trás, de braços abertos, a estibordo, lá do alto do
Seu pedestal, como que do cimo de uma nuvem, ficava o Cristo Rei a anunciar-nos
as boas-vindas e a abençoar-nos:
− «Rejubilem os
vossos corações; alegrem-se os céus e a terra.»
O desembarque dos militares prolongou-se até ao início do
começo da tarde, gerando-se muita confusão. Todos queriam desenfiar-se ao mesmo tempo, tal era a ânsia de se libertarem das
amarras e abraçarem os seus familiares que os esperavam em terra firme, até que
os comandantes das Companhias começaram a por alguma ordem no desembarque.
Foram constituídos grupos de desembarque, por Companhias,
coordenados pelas chefias o que, para manter alguma ordem, causou algum atraso,
sendo o meu grupo, talvez por ter sido o último a embarcar, o último a
sair.
Quando bati o tacão das botas em chão firme, e me fui
afastando do barco ao encontro dos meus familiares, e à medida que o recinto do
cais se esvaziava e serenava da eufórica êxtase dos ais: – meu rico filho; dos
suspiros: – meu amor que voltaste, ai que saudades; dos beijos infindáveis; dos
corpos enlaçados em sacudidos e chorosos abraços, comecei a sentir a sensação
agradável do odor que pairava no ar que respirava. Sensação esta totalmente
oposta àquela que senti, precisamente, dois anos antes, quando desembarquei em
Bissau.
À medida que
caminhava, parecia-me que tudo estava diferente; que tudo tinha mudado neste longo
período de tempo.
Todavia, tudo estava na mesma, nada tinha mudado.
Mantinha-se a mesma rotina: – uns acabavam de chegar; – outros, já tinham
partido, pela manhã.
Tudo parece não ter sido mais que um longo sonho
entrecortado por pesadelos dum sono profundo do qual acordava, ali, naquele
momento e ao espraiar o olhar perdido no vazio por entre a bruma fria de uma
longa manhã de Outono que se adensava pelo cais eis que ali estavam, hirtas, as
mesmas almas, com um sorriso extasiado, como se fossem estátuas vivas e dali
não tivessem arredado pé desde a hora da despedida, do «adeus até ao meu regresso», e estivessem, durante todo este tempo,
à cabeceira de um moribundo que acordava de um coma profundo.
Do lado da 24 de Julho, ouve-se o rilhar, sobre os carris,
dos elétricos das carreiras de Belém, Algés, Dafundo e Cruz Quebrada. Por
instantes o ar é atravessado pelo ruído tracejante de dois comboios que se
cruzam e rolam com destinos opostos: um, quase a chegar ao Cais do Sodré; o
outro, terá paragens em mais algumas estações, até chegar a Cascais. As
chaminés das tabernas e das tascas, do lado de lá da avenida, libertam e
espalham pelo ar um suave aroma a guisados e petiscos que aguça o apetite a
qualquer dos nossos estômagos já vazios; do lado de cá já se sente o cheiro da
castanha assada e ouve-se o pregão: - «Ó
quentes e boas».
Mais acima, subindo com o olhar, degrau a degrau, patamar a
patamar, a soberba escadaria para o miradouro de farta vista panorâmica sobre o
estuário do Tejo − pejado de navios da rota dos bacalhoeiros e
do Ultramar, a jusante, com um vai e vem de encontros cruzados sob a ponte
Salazar; fragatas à vela e barcos cacilheiros das travessias para a outra banda,
a montante; as docas desde o Cais das Colunas até à Torre
de Belém − e sobre este cais, que lhe dá o nome, de profundas
tristezas, muitas saudades e grandes alegrias, até para além dos braços do
Cristo Rei, até a vista e a imaginação se perderem.
Subindo mais o olhar, atravessando o jardim do miradouro; a
Pampulha e as Janelas Verdes e, inclinando a cabeça para trás, olhando por cima
da densa copa das árvores do jardim; a beijar o céu e a Estrela, a sobranceira
encosta dos Prazeres, da Lapa e da Madragoa, com os seus velhos palacetes e
casario em íngremes ruas e ruelas, que os últimos raios de sol ainda teimam em
aquecer e iluminar as varandas floridas das trapeiras das águas-furtadas sobre
os telhados vermelhos destes bairros lisboetas.
Ouço um camarada que caminha a meu lado gritar para outro
que segue mais à frente:
Eh pá! Cheira bem!
O outro responde:
«Pois cheira! Cheira Lisboa!»
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