sábado, 6 de agosto de 2016

Paragem na cidade do Funchal


1966
27 de Outubro
Quinta-feira, 23h00

Estou sentado a uma mesa na popa do navio. Ouço apenas o ruído dos motores, o rumorejar das ondas agitadas a baterem no costado do navio e do bar da primeira classe, à minha direita, uma música ternurenta na voz de Max: − «...Fui criança e andei descalço/ Porque a terra me aquecia/ Eram longos os meus olhos/ Quando a noite adormecia/... Pomba branca pomba branca/ Já perdi o teu voar/ Naquela terra distante/ Toda coberta pelo mar/ Pomba branca pomba branca...» e, para não variar, o mesmo ambiente dos outros dias que noutras circunstâncias seria bem mais agradável.
   Depois de uma paragem de cinco horas na cidade do Funchal, seguimos rumo ao arquipélago de Cabo-Verde.
    Esta linda cidade, para além de ser uma cidade muito visitada por turistas, é, sobretudo, um lugar de passagem de militares a caminho da guerra. Os navios da rota do Ultramar, carregados com contingentes de militares, atracam a este porto para descarregar ou carregar outras cargas ‘despejando’, também, toda a tropa-fandanga; qual chusma frenética e trepidante de valdevinos a fervilhar por aquelas calçadas acima. 
    Aqui, nesta linda cidade da ilha da Madeira, andei na companhia de dois camaradas a vagabundear. Almoçamos num restaurante típico e ao deambularmos pelas ruas da baixa fomos abordados discretamente por naturais a perguntarem-nos se estávamos interessados em "meninas"¹.
    -Oh… se estávamos!
 
     Fomos conduzidos a uma rua sendo-nos indicado algumas portas muito coloridas e floridas: umas abertas; outras entreabertas; outras, ainda, fechadas mas com um postigo aberto, etc. Ao acaso transpusemos uma destas portas e logo ficamos com a impressão de termos entrado em uma casa de respeitosas modistas. Pela falácia rapidamente nos apercebemos que as ‘meninas’, lambisgoias já trintonas, sentadas a costurar ou a bordar, estavam à espera do ‘freguês’ para lhe aferir outras medidas e ‘aviá-lo’ de imediato com a prova dentre pernas. No fundo, as máquinas de costura e outros apetrechos ligados ao métier não eram mais do que um esquema encontrado para disfarçar e encobrir uma casa de prostitutas em ateliê de costura uma vez que, estes antros do prazer foram proibidos, não há muito tempo, por decreto de Salazar². − Acabara-se o tempo das «meninas à sala»: bradavam as ‘madamas’. 
   
     Regressamos ao navio às 14 horas; hora a que este levantou ferros a caminho de Cabo-Verde.

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¹ [Expressão usada na gíria: ‘ir às meninas’; ‘ir às p…’]

²  [Decreto-Lei nº. 44579 de 19 de Setembro de 1962, com efeitos a partir a de 1 de Janeiro de 1963]
  
                                                                                                      
                                                                                                                             Passamos a grande ilha da Madeira,
                                                                                                             Que de muito arvoredo assim se chama,

                                                                                                                                           (Lusíadas, C. V. V.)

                                                                                  



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