1968
21 de Setembro
Sábado, 13h00
|
Café Tamar.
A música de fundo que se ouve neste ambiente, transmitida pela rádio, entrecortada
por anúncios e impercetível por causa da vozearia dos militares, é triste e
enfadonha.
Já há alguns dias que se ouve este género de música
lúgubre, transmitida pela Emissora Provincial da Guiné Portuguesa. Segundo ouço
comentar, creio que deve ser devido ao estado de saúde de Salazar se ter
agravado por, no passado dia três de Agosto, ter caído de uma cadeira.
Ontem sentado à mesa do café ouvi, com certa ironia de
caserna, um camarada dizer:
- O «António da
calçada»¹ caiu da cadeira onde habitualmente se recostava a dormir a
sesta; esta desconchavou-se e, «o Beirão
de que todos gostam»², caiu de cu no
chão.
Graças a Deus! Dizia outro: - À que louvar a dona
Maria, por suspirarmos todos de
alívio! A dona Maria³ tem de ser
condecorada por, (in) voluntariamente, ter prestado um grande serviço ao país.
Para poupar uns tostões ao orçamento da casa, foi adiando o conserto da cadeira
que já há algum tempo dava sinais de esboroamento, contribuindo desta forma,
(in) voluntária, para a grande causa nacional.
E remata:
- Esta cadeira fez mais pelo
povo da Nação num minuto, que muitos em muitos anos.
Ainda outro, em relação à música, diz:
- O homem ainda não morreu e já lhe estão a
fazer o funeral!
E logo, à surdina, começaram as anedotas e as infindáveis
histórias acerca da sua pessoa.
Entre outras um contou uma anedota que já todos conhecíamos
mas, com o efeito das Cucas
ingeridas, como que a festejar o acontecimento e, ainda, a avaliar pelas
desbragadas gargalhadas, achamos-lhe muita pilhéria por esta ter muito a ver
com a sua personalidade de forreta.
Então, conta: - Salazar foi de visita a uma cidade do
interior do País e, como é hábito em qualquer evento nacional, perfilam-se os
mendigos locais a estender a mão, a mendigar uma esmola. Vários ministros e
secretários da comitiva vão dando uns tostões a este e àquele e, por último, Salazar
dando esmola a um, com ares de muito feliz e cheio de salamaleques por lhe
acontecer tão grande sorte de um tão ilustre benfeitor, diz:
- «Tome lá para um fato».
Quando os esmolados veem o
Salazar pelas costas interrogam-se e felicitando o afortunado companheiro da
desventura pela exuberante esmola este mostra a palma da mão e, estupefactos,
veem nada mais que um negro botão.
Outro, conta como verdadeira
a história de um grupo de cantadeiras da sua terra que resolvem escrever uma
carta ao Dr. Salazar pedindo-lhe um subsídio para formar um rancho de folclore.
Na volta, recebem uma carta com a seguinte resposta:
− «Minhas senhoras, eu nem tenho dinheiro para dar aos que choram, quanto
mais aos que cantam»!
Eu, também tendo a minha
história, também a contei como certa, por estar no local aonde ela ocorreu.
Nos cinemas, antes de começar
o filme a que ainda se entrepunha os desenhos animados, eram apresentados os
documentários da propaganda do SNI, (Secretariado
Nacional de Informação), conhecidos por «Imagens de
Portugal».
Então, começou a sessão cinematográfica com a projeção do ato
inaugural da Ponte da Arrábida com toda a comitiva de Estado e, a dada altura,
vê-se nas imagens o Dr. Salazar debruçar-se sobre o parapeito d0 varandim
metálico da ponte, como que a espreitar o cortejo fluvial, de barcos
embandeirados, que a atravessa sobre as águas do Douro, sendo de seguida
imitado por um seu ministro que ao mesmo tempo lhe estende o braço por cima dos
ombros. Neste dado momento, e no mesmo instante, acendem-se todas as luzes da
sala, a projeção documental é interrompida e todos, desconfiados, olham para
todos os lados com assobios, apupos e pateados; pxius d’aqui, d’ali e d’acolá…
Esta ação havia sido precedida pela exclamação de um vozeirão: - «empurra-o».
Toda a ânsia e expectativa expressa nos primeiros
parágrafos do capítulo anterior se desvaneceram. Não posso embarcar antes de
completar os 24 meses de comissão de serviço.
O meu chefe da secção descobriu esta quando soube que eu vim para a Província da Guiné por
motivo de uma sanção disciplinar, pegou por aí, para não me deixar ir embora.
Ele nada tem a ver com isso. Só à minha Companhia diz
respeito, e por parte desta eu embarcava, mas ele está a embirrar comigo de tão
prepotente que é.
Como viu que não me foi difícil arranjar um substituto, até
que chegue o que vem da Metrópole para me substituir, quer tramar-me com a sua
prepotência.
Como na gíria dizemos que com a tropa não se brinca vou ter
de aguentar pianinho pelos 24 meses,
não vá o diabo tecê-las e ele estragar-me a vida. Já me avisaram que é gajo
para isso e que terei sorte em chegar a essa altura ele não inventar um outro
estratagema qualquer: nesta tropa há muito filho da mãe.
Tenho notado que desde o dia – e que malfadado dia – em que
tentei desenrascar-me, arranjando um substituto, ele alterou-se comigo
humilhando-me em frente de toda a secção e desde aí para cá não me anda a topar lá muito bem.
Tão acabrunhado e agastado fiquei que tive de fazer um
grande esforço para conseguir conter-me nas lágrimas e, agora que estou
sozinho, choro de desespero e raiva, de tão profundamente magoado, por este jarreta não compreender a minha
ansiedade quando tentava explicar-lhe – pensando eu, na minha ingenuidade,
saber mais do que ele – como procediam, nas outras secções, os chefes de
serviço, em idênticas circunstâncias. Que desagradável momento!
Foi buscar-me livros e regulamentos e recita-me a
lengalenga dos artigos do RDM para me convencer, ao que eu respondi, de voz
embargada pela emoção de não conformado, que por aí nada poderia fazer mas, o
meu major, bem que poderia compreender o meu anseio em voltar à família;
facilitar-me a vida, não levando tanto à risca o regulamento, dispensando-me.
Pois o jarreta assanhou-se
de tal maneira que estava a ver que ainda me batia.
O que eu sei, acerca disto, pelo que me é dito, é como
fazem todas as secções e unidades do comando; o chefe do serviço dispensa o
subordinado, a Companhia, onde está colocado, verifica se este deve ao Estado e
a primeira repartição marca o transporte. Mas este chefe, jarreta, tem de seguir o regulamento e vai acabar por me tramar.
Ironia. Este episódio aconteceu a uma aziaga Sexta-feira,
13.
O major V. Santos, outro jarreta, a partir daí, anda sempre ‘em cima de mim’. Ainda hoje fui à enfermaria, levar uma injeção,
tendo chegado mais tarde à secção. Viu-me, depois, um pouco na conversa com os
camaradas e não se dirigiu a mais ninguém senão a mim, nestes termos:
Tu agora andas sempre no hospital e na
enfermaria e, ainda-por-cima, não tentas fazer alguma coisa. Estas máquinas
estão paradas e há fichas para fazer!
O problema deste é as fichas. Do capitão Campos, que se foi
embora, eram os boletins m/14. Um indivíduo, nesta tropa, sempre tem de aturar
cada mania!
Ao longo desta vida, desperdiçada estupidamente, sempre
aparecem pela frente, alguns jarretas
como estes que, com o avançar da idade se vão sentindo de parte, já lhes falta
tempo para recuperar o tempo perdido, vão perdendo o poder e o tesão e então
descarregam a sua prepotência naqueles que lhes estão muito abaixo. É um pouco
como a hierarquia da capoeira; as galinhas que estão por debaixo apanham sempre
bicadas das que estão por cima. Quando eu próprio estou por baixo, parece que
toda a capoeira me cai em cima.
___________________
¹ [Esta alcunha associada ao seu nome era-lhe atribuída por residir, no Palácio de São Bento, na Calçada da Estrela, e nunca de lá sair. Também lhe era associado, entre outras adjetivações de carácter mais ou menos depreciativas, o sobrenome de «o António das botas», por usar botas e sempre as mesmas. Às vezes que saía, estas não se rompiam e às raras vezes que as ditas davam sinais a dona Maria mandava pôr -lhe meias solas.]
¹ [Esta alcunha associada ao seu nome era-lhe atribuída por residir, no Palácio de São Bento, na Calçada da Estrela, e nunca de lá sair. Também lhe era associado, entre outras adjetivações de carácter mais ou menos depreciativas, o sobrenome de «o António das botas», por usar botas e sempre as mesmas. Às vezes que saía, estas não se rompiam e às raras vezes que as ditas davam sinais a dona Maria mandava pôr -lhe meias solas.]
² [Frase publicitária do Licor
Beirão associada com alguma jocosidade a Salazar por ele ser de origem beirã.
Também se lhe associava, igualmente com alguma jocosidade, «Um beirão de boa
cepa» também esta frase publicitária do mesmo licor.]
³ [Maria de Jesus. Governanta
da casa de Salazar. E do país, diziam as más-línguas.]
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