terça-feira, 16 de janeiro de 2018

O «António da Calçada» caiu da cadeira




        1968
21 de Setembro
Sábado, 13h00


  Café Tamar. A música de fundo que se ouve neste ambiente, transmitida pela rádio, entrecortada por anúncios e impercetível por causa da vozearia dos militares, é triste e enfadonha.
Já há alguns dias que se ouve este género de música lúgubre, transmitida pela Emissora Provincial da Guiné Portuguesa. Segundo ouço comentar, creio que deve ser devido ao estado de saúde de Salazar se ter agravado por, no passado dia três de Agosto, ter caído de uma cadeira.
Ontem sentado à mesa do café ouvi, com certa ironia de caserna, um camarada dizer:
- O «António da calçada»¹ caiu da cadeira onde habitualmente se recostava a dormir a sesta; esta desconchavou-se e, «o Beirão de que todos gostam»², caiu de cu no chão.
 Graças a Deus! Dizia outro: - À que louvar a dona Maria, por suspirarmos todos de alívio! A dona Maria³ tem de ser condecorada por, (in) voluntariamente, ter prestado um grande serviço ao país. Para poupar uns tostões ao orçamento da casa, foi adiando o conserto da cadeira que já há algum tempo dava sinais de esboroamento, contribuindo desta forma, (in) voluntária, para a grande causa nacional.
E remata:
- Esta cadeira fez mais pelo povo da Nação num minuto, que muitos em muitos anos.
Ainda outro, em relação à música, diz: 
 - O homem ainda não morreu e já lhe estão a fazer o funeral!
E logo, à surdina, começaram as anedotas e as infindáveis histórias acerca da sua pessoa.
Entre outras um contou uma anedota que já todos conhecíamos mas, com o efeito das Cucas ingeridas, como que a festejar o acontecimento e, ainda, a avaliar pelas desbragadas gargalhadas, achamos-lhe muita pilhéria por esta ter muito a ver com a sua personalidade de forreta. 
Então, conta: - Salazar foi de visita a uma cidade do interior do País e, como é hábito em qualquer evento nacional, perfilam-se os mendigos locais a estender a mão, a mendigar uma esmola. Vários ministros e secretários da comitiva vão dando uns tostões a este e àquele e, por último, Salazar dando esmola a um, com ares de muito feliz e cheio de salamaleques por lhe acontecer tão grande sorte de um tão ilustre benfeitor, diz:
 - «Tome lá para um fato».
Quando os esmolados veem o Salazar pelas costas interrogam-se e felicitando o afortunado companheiro da desventura pela exuberante esmola este mostra a palma da mão e, estupefactos, veem nada mais que um negro botão.
Outro, conta como verdadeira a história de um grupo de cantadeiras da sua terra que resolvem escrever uma carta ao Dr. Salazar pedindo-lhe um subsídio para formar um rancho de folclore. Na volta, recebem uma carta com a seguinte resposta:
«Minhas senhoras, eu nem tenho dinheiro para dar aos que choram, quanto mais aos que cantam»!
Eu, também tendo a minha história, também a contei como certa, por estar no local aonde ela ocorreu.
Nos cinemas, antes de começar o filme a que ainda se entrepunha os desenhos animados, eram apresentados os documentários da propaganda do SNI, (Secretariado Nacional de Informação), conhecidos por «Imagens de Portugal».  
Então, começou a sessão cinematográfica com a projeção do ato inaugural da Ponte da Arrábida com toda a comitiva de Estado e, a dada altura, vê-se nas imagens o Dr. Salazar debruçar-se sobre o parapeito d0 varandim metálico da ponte, como que a espreitar o cortejo fluvial, de barcos embandeirados, que a atravessa sobre as águas do Douro, sendo de seguida imitado por um seu ministro que ao mesmo tempo lhe estende o braço por cima dos ombros. Neste dado momento, e no mesmo instante, acendem-se todas as luzes da sala, a projeção documental é interrompida e todos, desconfiados, olham para todos os lados com assobios, apupos e pateados; pxius d’aqui, d’ali e d’acolá… Esta ação havia sido precedida pela exclamação de um vozeirão: - «empurra-o».
                                          
Toda a ânsia e expectativa expressa nos primeiros parágrafos do capítulo anterior se desvaneceram. Não posso embarcar antes de completar os 24 meses de comissão de serviço.
O meu chefe da secção descobriu esta quando soube que eu vim para a Província da Guiné por motivo de uma sanção disciplinar, pegou por aí, para não me deixar ir embora.
Ele nada tem a ver com isso. Só à minha Companhia diz respeito, e por parte desta eu embarcava, mas ele está a embirrar comigo de tão prepotente que é.  
Como viu que não me foi difícil arranjar um substituto, até que chegue o que vem da Metrópole para me substituir, quer tramar-me com a sua prepotência.
Como na gíria dizemos que com a tropa não se brinca vou ter de aguentar pianinho pelos 24 meses, não vá o diabo tecê-las e ele estragar-me a vida. Já me avisaram que é gajo para isso e que terei sorte em chegar a essa altura ele não inventar um outro estratagema qualquer: nesta tropa há muito filho da mãe.
Tenho notado que desde o dia – e que malfadado dia – em que tentei desenrascar-me, arranjando um substituto, ele alterou-se comigo humilhando-me em frente de toda a secção e desde aí para cá não me anda a topar lá muito bem.
Tão acabrunhado e agastado fiquei que tive de fazer um grande esforço para conseguir conter-me nas lágrimas e, agora que estou sozinho, choro de desespero e raiva, de tão profundamente magoado, por este jarreta não compreender a minha ansiedade quando tentava explicar-lhe – pensando eu, na minha ingenuidade, saber mais do que ele – como procediam, nas outras secções, os chefes de serviço, em idênticas circunstâncias. Que desagradável momento!
Foi buscar-me livros e regulamentos e recita-me a lengalenga dos artigos do RDM para me convencer, ao que eu respondi, de voz embargada pela emoção de não conformado, que por aí nada poderia fazer mas, o meu major, bem que poderia compreender o meu anseio em voltar à família; facilitar-me a vida, não levando tanto à risca o regulamento, dispensando-me.
Pois o jarreta assanhou-se de tal maneira que estava a ver que ainda me batia.
O que eu sei, acerca disto, pelo que me é dito, é como fazem todas as secções e unidades do comando; o chefe do serviço dispensa o subordinado, a Companhia, onde está colocado, verifica se este deve ao Estado e a primeira repartição marca o transporte. Mas este chefe, jarreta, tem de seguir o regulamento e vai acabar por me tramar.
Ironia. Este episódio aconteceu a uma aziaga Sexta-feira, 13.
O major V. Santos, outro jarreta, a partir daí, anda sempre ‘em cima de mim’. Ainda hoje fui à enfermaria, levar uma injeção, tendo chegado mais tarde à secção. Viu-me, depois, um pouco na conversa com os camaradas e não se dirigiu a mais ninguém senão a mim, nestes termos:
 Tu agora andas sempre no hospital e na enfermaria e, ainda-por-cima, não tentas fazer alguma coisa. Estas máquinas estão paradas e há fichas para fazer! 
O problema deste é as fichas. Do capitão Campos, que se foi embora, eram os boletins m/14. Um indivíduo, nesta tropa, sempre tem de aturar cada mania!
Ao longo desta vida, desperdiçada estupidamente, sempre aparecem pela frente, alguns jarretas como estes que, com o avançar da idade se vão sentindo de parte, já lhes falta tempo para recuperar o tempo perdido, vão perdendo o poder e o tesão e então descarregam a sua prepotência naqueles que lhes estão muito abaixo. É um pouco como a hierarquia da capoeira; as galinhas que estão por debaixo apanham sempre bicadas das que estão por cima. Quando eu próprio estou por baixo, parece que toda a capoeira me cai em cima. 
      
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¹ [Esta alcunha associada ao seu nome era-lhe atribuída por residir, no Palácio de São Bento, na Calçada da Estrela, e nunca de lá sair. Também lhe era associado, entre outras adjetivações de carácter mais ou menos depreciativas, o sobrenome de «o António das botas», por usar botas e sempre as mesmas. Às vezes que saía, estas não se rompiam e às raras vezes que as ditas davam sinais a dona Maria mandava pôr -lhe meias solas.]

² [Frase publicitária do Licor Beirão associada com alguma jocosidade a Salazar por ele ser de origem beirã. Também se lhe associava, igualmente com alguma jocosidade, «Um beirão de boa cepa» também esta frase publicitária do mesmo licor.]

³ [Maria de Jesus. Governanta da casa de Salazar. E do país, diziam as más-línguas.]

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