05 de Outubro
Sábado, 14h00
Acabei agora de
escrever ao meu irmão e de tomar o cafezinho da ordem. Está um calor danado. A
Luz foi-se abaixo nesta zona e as ventoinhas estão paradas. Estou em frente de
uma porta e corre um pouquinho de ar fresquinho e vai mais uma golada de água
para criar mais bichos na barriga.
O major V. Santos saiu da secção e passou a desempenhar
serviço na secretaria do Quartel-General. Agora, já não tenho mais quem me chateie por causa das
fichas. Presentemente está o major R. Júnior a dirigir a secção.
O capitão J. de Carvalho está de licença e o major só se
lamenta da sua vida. Diz que tem muito trabalho e que sozinho não consegue
orientar a secção. Queixume que já expôs ao coronel C. Beirão, chefe da
primeira repartição, ao que este lhe respondeu: antes dele, o responsável da
secção era o capitão Campos e que este nunca se queixava!
Disseram, aqui, na secção, que o capitão Campos, pouco
depois de ter chegado à Metrópole, foi internado nos cuidados dos serviços de
psiquiatria por ter pirado, com as
canseiras que arrastou daqui com ele.
Segundo dizem, antes de ele aqui chegar, a secção estava
num caos e ele pôs ordem nisto mas, mesmo assim, hoje ainda andamos todos a apanhar papeis e, a meu ver, parece que
vai de mal a pior.
O capitão Campos dava as ordens e ele próprio executava
muito serviço. Era daqueles tipos que fazia
a festa, atirava os foguetes e ainda apanhava as canas. Por isso é que ele
ficou «apanhado» e está no estado em
que dizem estar.
Depois do capitão Campos, chegaram a ser três a darem
ordens, contradizendo-se uns aos outros, instalando ainda mais a confusão. − Assim vai esta guerra dos papéis.
O meu regresso à Metrópole voltou novamente à baila.
Apanhei o major R. Júnior bem-disposto e falando-lhe ao coração já me deu
esperanças de embarcar no próximo dia 28.
O meu substituto já foi mobilizado – azar o dele – segundo informaram, na primeira
repartição, o major e agora só falta cá chegar a nota do seu embarque.
Graças a Deus que me sinto mais aliviado. O major R. Júnior
parece-me agora mais acessível. Talvez, agora, por estar sozinho a chefiar a
secção e não ter os outros a sobreporem-se-lhe.
Não imagino quantos anos terá este major, ou o outro que
entretanto saiu, − baptizados por
nós: «a parelha de mulas brancas», ou
«os lão branca», por terem o ‘pel0’ todo branco, a ‘lão’, como dizia-mos nós, os do norte − mas, pelo jeito da marreca, do andar curvado e das pernas
arqueadas, seguramente, serão pessoas para cima dos 60 e muitos anos que,
afeitos a reverências e subserviências de outrora e agora armados em salvadores
da Pátria, estão sempre à espera que os bajulem e lhes lambam as botas. E, ao que parece, estes também pertencem àquele
grupo dos ‘papa comissões’ que,
havendo muitos por aí, colocados em secções e repartições, fazem a guerra sentados
a uma secretária desengonçada, sob o ar das ventoinhas que gemem e chiam sobre
as suas cabeças, passeiam as suas próprias sombras esqueléticas, arrastando os
pés e resfolgando, pela cidade.
Esta tropa, das «brigadas
do reumático», tem mais propensão para lidar com os regulamentos e
disciplina repressiva, muitas vezes impiedosamente coerciva, do que lidar com
esta mocidade que, por sermos jovens, tem outras aspirações, poderia ser os
seus filhos para não dizer, já, os seus netos. Alguns nem sequer são bem
aceites no seio da sua própria família por, durante a sua existência, aplicarem
o mesmo totalitarismo em casa como se esta fosse uma extensão da repartição do
quartel, sendo esta guerra um alívio para as suas vidas com a ausência destas ‘carcaças velhas’ de esclerose avançada
e almas engelhadas.
Em um quartel por onde passei, entre outros vários
episódios de prepotência que ouvi contar, tive conhecimento de um caso em que
uma destas patentes levou a mulher e os filhos ao quartel e enfiando-os na barbearia das praças
ordenou ao barbeiro que lhes rapasse o cabelo como se fosse uma mera carecada, daquelas que costumava mandar
dar à malta.
Igualmente em outro quartel por onde passei o comandante do
mesmo era zarolho, (armado em Moshe Dayan¹, ostentava com
sobranceria, por debaixo da pala polida do boné, uma 'tapa' forrada a cetim preta), porque o seu impedido lhe tinha vazado
um olho com o sabre. Constava-se que uma das suas ordenanças não lhe bastando
apenas a sopeira² lhe açambarcou
também a mulher. Safou-o o ter sido mobilizado.
Daí prá frente os impedidos e as ordenanças passaram a ser
0s seus inimigos, fazendo-lhes a vida negra, até que um dia houve um que perdeu
as estribeiras e, em consequência, foi parar às masmorras e ao «barril» do Forte da Graça em Elvas.
Tenho tido bastante trabalho de desenho estando agora a
fazer dois retratos a pastel dos filhos do major C. Álvares que foi chefe da
secção e agora está na secção de justiça.
O major R. Júnior afinfou
uma «porrada», (fez uma participação
disciplinar), ao primeiro-cabo Orestes por este empenhar-se pouco no serviço que
lhe está distribuído mas, parece que ficou sem efeito, por ele lhe pedir para o
mudar de serviço, indo para o lugar dele o cabo Pereira.
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¹ [General Israelita que em 1967 comandou a guerra dos «seis dias» contra os árabes.]
¹ [General Israelita que em 1967 comandou a guerra dos «seis dias» contra os árabes.]
² [Criada de servir.
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