terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Uma tropa das «brigadas do reumático»



      
       1968
05 de Outubro

Sábado, 14h00





    Acabei agora de escrever ao meu irmão e de tomar o cafezinho da ordem. Está um calor danado. A Luz foi-se abaixo nesta zona e as ventoinhas estão paradas. Estou em frente de uma porta e corre um pouquinho de ar fresquinho e vai mais uma golada de água para criar mais bichos na barriga.

O major V. Santos saiu da secção e passou a desempenhar serviço na secretaria do Quartel-General. Agora, já não tenho mais quem me chateie por causa das fichas. Presentemente está o major R. Júnior a dirigir a secção.
O capitão J. de Carvalho está de licença e o major só se lamenta da sua vida. Diz que tem muito trabalho e que sozinho não consegue orientar a secção. Queixume que já expôs ao coronel C. Beirão, chefe da primeira repartição, ao que este lhe respondeu: antes dele, o responsável da secção era o capitão Campos e que este nunca se queixava!

Disseram, aqui, na secção, que o capitão Campos, pouco depois de ter chegado à Metrópole, foi internado nos cuidados dos serviços de psiquiatria por ter pirado, com as canseiras que arrastou daqui com ele.

Segundo dizem, antes de ele aqui chegar, a secção estava num caos e ele pôs ordem nisto mas, mesmo assim, hoje ainda andamos todos a apanhar papeis e, a meu ver, parece que vai de mal a pior.

O capitão Campos dava as ordens e ele próprio executava muito serviço. Era daqueles tipos que fazia a festa, atirava os foguetes e ainda apanhava as canas. Por isso é que ele ficou «apanhado» e está no estado em que dizem estar.

Depois do capitão Campos, chegaram a ser três a darem ordens, contradizendo-se uns aos outros, instalando ainda mais a confusão. Assim vai esta guerra dos papéis.



O meu regresso à Metrópole voltou novamente à baila. Apanhei o major R. Júnior bem-disposto e falando-lhe ao coração já me deu esperanças de embarcar no próximo dia 28. 

O meu substituto já foi mobilizado – azar o dele – segundo informaram, na primeira repartição, o major e agora só falta cá chegar a nota do seu embarque. 

Graças a Deus que me sinto mais aliviado. O major R. Júnior parece-me agora mais acessível. Talvez, agora, por estar sozinho a chefiar a secção e não ter os outros a sobreporem-se-lhe.

Não imagino quantos anos terá este major, ou o outro que entretanto saiu, baptizados por nós: «a parelha de mulas brancas», ou «os lão branca», por terem o ‘pel0’ todo branco, a ‘lão’, como dizia-mos nós, os do norte mas, pelo jeito da marreca, do andar curvado e das pernas arqueadas, seguramente, serão pessoas para cima dos 60 e muitos anos que, afeitos a reverências e subserviências de outrora e agora armados em salvadores da Pátria, estão sempre à espera que os bajulem e lhes lambam as botas. E, ao que parece, estes também pertencem àquele grupo dos ‘papa comissões’ que, havendo muitos por aí, colocados em secções e repartições, fazem a guerra sentados a uma secretária desengonçada, sob o ar das ventoinhas que gemem e chiam sobre as suas cabeças, passeiam as suas próprias sombras esqueléticas, arrastando os pés e resfolgando, pela cidade.

Esta tropa, das «brigadas do reumático», tem mais propensão para lidar com os regulamentos e disciplina repressiva, muitas vezes impiedosamente coerciva, do que lidar com esta mocidade que, por sermos jovens, tem outras aspirações, poderia ser os seus filhos para não dizer, já, os seus netos. Alguns nem sequer são bem aceites no seio da sua própria família por, durante a sua existência, aplicarem o mesmo totalitarismo em casa como se esta fosse uma extensão da repartição do quartel, sendo esta guerra um alívio para as suas vidas com a ausência destas ‘carcaças velhas’ de esclerose avançada e almas engelhadas.

Em um quartel por onde passei, entre outros vários episódios de prepotência que ouvi contar, tive conhecimento de um caso em que uma destas patentes levou a mulher e os filhos ao quartel e enfiando-os na barbearia das praças ordenou ao barbeiro que lhes rapasse o cabelo como se fosse uma mera carecada, daquelas que costumava mandar dar à malta.

Igualmente em outro quartel por onde passei o comandante do mesmo era zarolho, (armado em Moshe Dayan¹, ostentava com sobranceria, por debaixo da pala polida do boné, uma 'tapa' forrada a cetim preta), porque o seu impedido lhe tinha vazado um olho com o sabre. Constava-se que uma das suas ordenanças não lhe bastando apenas a sopeira² lhe açambarcou também a mulher. Safou-o o ter sido mobilizado.  

Daí prá frente os impedidos e as ordenanças passaram a ser 0s seus inimigos, fazendo-lhes a vida negra, até que um dia houve um que perdeu as estribeiras e, em consequência, foi parar às masmorras e ao «barril» do Forte da Graça em Elvas.  



Tenho tido bastante trabalho de desenho estando agora a fazer dois retratos a pastel dos filhos do major C. Álvares que foi chefe da secção e agora está na secção de justiça.

O major R. Júnior afinfou uma «porrada», (fez uma participação disciplinar), ao primeiro-cabo Orestes por este empenhar-se pouco no serviço que lhe está distribuído mas, parece que ficou sem efeito, por ele lhe pedir para o mudar de serviço, indo para o lugar dele o cabo Pereira.

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¹ [General Israelita que em 1967 comandou a guerra dos «seis dias» contra os árabes.]



² [Criada de servir.

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